BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) - Ponto central da gestão de Gustavo Petro na Colômbia, a chamada "paz total" tem como prioridade um acordo para a desmobilização do Exército de Libertação Nacional (ELN). O projeto começou a definir contornos na semana passada, quando governo e guerrilha anunciaram a retomada dos diálogos. O que virá daí, porém, se mostra bem desafiador -até mais do que o pacto com as Farc.
Bem aceito pela aliança política que elegeu o primeiro presidente de esquerda do país, o projeto da paz total de Petro prevê instâncias distintas de negociações para guerrilhas políticas e grupos criminosos que vinculados ao narcotráfico.
"É óbvio que uma força que tem uma agenda política, como o ELN, será ouvida de modo diferenciado", diz à Folha o ministro da Defesa, Iván Velázquez. "Dialogar sobre pontos em comum, como a questão agrária, é algo possível --diferentemente do que pode ocorrer com uma Bacrim [grupo criminoso], à qual se pode oferecer alguma anistia em casos de delitos menores, em troca de informação. Não pode haver o mesmo tipo de reparação a todos."
A direita interpreta essa proposta de indultos como impunidade generalizada, enquanto Petro pediu, por exemplo, que fossem anistiados camponeses presos só por plantarem folhas de coca. A "paz total" foi uma das razões que levaram parte da população às ruas para protestos contra o esquerdista no dia 26.
É certo que não se pode reduzir a violência no país tendo a paz com as Farc, mas não com outros grupos, e sem uma nova política para as drogas. Com o ELN, Velázquez diz que, entre outros pontos de diálogo, será possível avançar na necessidade de redesenhar o mapa da terra na Colômbia --a desigualdade na posse da terra é pano de fundo dos conflitos iniciados nos anos 1960.
Não à toa, o governo anunciou no sábado (8) um acordo com a federação de criadores de gado para a compra de 3 milhões de hectares de terras, a um ritmo de 500 mil hectares por ano, para repassar a camponeses dentro do plano de reforma agrária. "É um pacto histórico", disse Petro.
Formada em 1964, a última guerrilha marxista com uma agenda política até hoje em atuação, está em 9 dos 32 departamentos do país e em vários estados venezuelanos. Até 2016 o ELN tinha 3.000 integrantes; desde então, contou com a adesão de dissidentes das Farc pós-acordo e de outras facções criminosas, além de membros arregimentados no país vizinho. Segundo ONGs que acompanham o tema, como a Insight Crime, hoje são 5.000 integrantes efetivos.
O grupo também se diferencia das Farc por guardar uma inspiração religiosa, vinculada à Teologia da Libertação.
O diálogo com o Estado, ora retomado, tinha se iniciado na última vez por Juan Manuel Santos, que acreditava que nenhuma paz era possível sem acordos com todos os grupos que cometem crimes. Seu sucessor, Iván Duque, que suspendeu as conversas em 2019, tinha para o conflito só a solução bélica. Desde então, os negociadores do ELN se exilaram em Havana, à espera que a negociação fosse reaberta.
As discussões voltarão do ponto em que haviam parado, o que pode significar um ganho de tempo. Por outro lado, o ELN tem dado sinais de que não bastará a solução do "outro sim" -formulada pelo segundo colocado na eleição, o populista Rodolfo Hernández--, uma reprodução do acordo com as Farc. A guerrilha, que diz não ser uma "mini-Farc", quer algo desenhado segundo sua história e suas lutas.
"A primeira coisa que governo e sociedade precisam entender é que o ELN não está debilitado nem buscando a paz como única saída. Essa era a situação das Farc. O ELN não precisa do acordo e é uma força bastante estável e com controle de suas áreas", diz à Folha de S.Paulo Víctor de Currea-Lugo, médico e jornalista autor de várias publicações sobre a guerrilha. "Se estão simpáticos ao processo é porque estão de acordo com a redução da violência no país, mas não a qualquer custo -exigem colocar na agenda seus princípios mais essenciais."
O grupo também não está interessado no pedregoso sistema de reinserção na sociedade tocado com as Farc. Em vez disso, cobra do Estado mudança mais rápida e efetiva para que ex-guerrilheiros não sejam tratados "como cidadãos de segunda classe", a exemplo do que Currea-Lugo vê acontecer com os ex-Farc, que sofrem com baixos salários e sistemas precários -levando muitos a voltar ao crime em pouco tempo.
E, diferentemente das Farc e do extinto M-19 do qual Petro foi membro, o ELN não pretende se transformar em partido. Sua participação política se daria por meio da influência para que a Constituição resolvesse os temas de fundo que motivaram o conflito colombiano; o principal deles, o da distribuição de terras.
"Mais importante que estar no Congresso, o ELN quer falar ao país e atuar regionalmente. O fato de serem de esquerda não faz deles 'petristas'. Tampouco aceitarão bem a ideia de um tribunal especial, que oferece penas reparatórias a quem se submete aos acordos e promete falar sobre o conflito", diz Currea-Lugo, que já trabalhou em campos de conflito na Colômbia, no Sudão e na Palestina e com organizações como a Cruz Vermelha.
Outro obstáculo é ter como um dos países garantidores do diálogo a Venezuela (ao lado de Cuba e Noruega). Muitos veem a escolha como contrassenso, embora tenha se dado o mesmo no acordo com as Farc e a participação de Caracas seja estrategicamente inevitável --pelo modo como o ELN atua no país, com laços com o chavismo.
"[Nicolás] Maduro passou anos dizendo que não tinha nada a ver com o ELN, que nem sabia que estavam em seu território. Agora é como se afirmasse que era tudo mentira", disse o líder opositor Leopoldo López. "Que credibilidade damos a um acordo que tem como garantidor um ditador como Maduro? Alguém com a ficha suja em relação a direitos humanos não pode ser garantidor de nada."
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