SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A guerra não é quase nunca um tema atraente. Mas um livro que se escreva sobre ela pode ser historicamente preciso e carregado de sedutoras informações. É o caso de "Trem para a Ucrânia", do jornalista gaúcho Rodrigo Lopes.

Ele acaba de publicar um dos primeiros trabalhos de um brasileiro sobre o conflito iniciado em fevereiro deste ano, quando forças militares russas invadiram seu vizinho, criando um caos de milhões de refugiados e muito luto e destruição.

Um dos grandes méritos da escrita de Rodrigo Lopes é o de ter descoberto uma sucessão de rostos e nomes próprios dentro de um conflito em que, para boa parte dos leitores, prevalecia uma visão nublada pelo anonimato. Os dramas dos vivos e dos defuntos são tão distantes que não falariam diretamente à nossa emoção.

Mas o jornalista descobre dentro da Ucrânia a aflição de outros brasileiros, uma comunidade mais que minoritária, todos eles surpreendidos pela guerra e envolvidos em aventuras para que consigam deixar o país.

É o caso da bióloga de Sorocaba Vanessa Rodrigues, que trabalhava em Kiev. Ou, como prefere o autor, em Kyiv, transliteração do ucraniano e não do russo, como a capital do país é em geral designada.

Vanessa é casada com Vladimir, nascido em Moscou, mas que se mudou para o Brasil ainda menino. Ela está grávida, o que traz um condimento de maior dificuldade ao caminho de volta. E ambos são donos de Thor, um cachorro de 13 anos que, resolvidos todos os problemas, quase não consegue embarcar no avião da FAB que traria todos de volta -MMporque, entre outras coisas, os donos estavam sem a documentação sanitária do cão.

Foi preciso que uma ativista dos direitos animais fizesse circular um vídeo em que Vanessa pedia uma exceção para embarcar com Thor, que a acompanhava desde seus tempos de solteira no interior de São Paulo.

No mesmo comboio de três carros, um deles conduzido pelo próprio embaixador do Brasil na Ucrânia e que atravessou a fronteira com a Polônia para que o grupo tomasse o avião militar, estavam Matheus e Moreno, dois jogadores de futebol que atuavam em clubes profissionais no país deflagrado e que passaram dias na tentativa inútil de embarcar.

Lopes também descobriu na Ucrânia a paulista Clara Magalhães, que morava na Alemanha e, com o conflito, alugou um carro, encheu-o de produtos de higiene e garrafas de água e rumou para ajudar pessoas que deixassem o país como refugiadas.

Em tempo. O jornalista e escritor é repórter e comentarista da Rádio Gaúcha, do jornal Zero Hora e da rede de televisão RBS. O título de seu livro é porque foi de trem que ele penetrou em território ucraniano, depois de tentar entrar de avião, de carro e mesmo a pé.

Entre os brasileiros, um deles foi à Ucrânia e não mais voltou. André Hack Bahi, 43, nascido em Porto Alegre e pai de três filhos, alistou-se como voluntário das tropas ucranianas, tendo sido muitíssimo bem recebido por ter servido o Exército e trabalhado numa empresa de escolta armada.

Ele foi morto pelas tropas invasoras russas. Cremado, seus familiares receberam suas cinzas e mais a medalha póstuma que a Ucrânia lhe outorgou. André foi o primeiro dos três voluntários brasileiros mortos em combate, nas contas que Lopes fez antes de concluir seu livro.

O autor não presenciou combates nem estava credenciado para tanto. Mas foi testemunha da tensão em cada episódio relatado. Seu espírito de repórter tem a sensibilidade de citar a briga por uma tomada para carregar o celular no chão da estação ferroviária com o solo forrado por ucranianos que esperavam pela oportunidade de tomar um trem que os levasse para longe do país.

Há a fumaça pelo incêndio de prédios recém-atingidos por mísseis russos. E há o incessante tocar de sirenes que obriga civis a se refugiar em abrigos que podem ser estações de metrô, localizadas em profundidade e protegidas pela radioatividade do inimigo (coisas da época soviética) ou então o assoalho de um refeitório no subsolo de um grande hotel.

A narrativa é tensa, com momentos de toque de recolher e de estrondos de bombardeios. Ou humanizada pela existência de voluntários que oferecem sopas ou sanduíches para os ucranianos aglomerados em meio às tentativas de cruzar as fronteiras.

Uma última observação sobre o caráter preciso e exemplar com que o livro, em poucas páginas, faz o histórico das complicadas relações entre a Ucrânia e a Rússia, o que é fundamental para que não se atribua o atual conflito à patologia individual do presidente Vladimir Putin.

É uma longa história, que vem no mínimo do século 13, quando o Império Mongol se dividiu entre o Grão-Principado de Moscou e o Grão-Ducado da Lituânia. Calcula-se que 13 milhões de ucranianos morreram entre 1933 e 1945, por meio das criminosas experiências agrícolas de Stálin, que mataram parte da população de desnutrição, e também pela notória empáfia homicida da Alemanha nazista.

TREM PARA A UCRÂNIA

Preço R$ 54,90 (152 págs.)

Autor Rodrigo Lopes

Editora Besouro Box


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