MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) - Desde a chegada do fascismo ao poder, há cem anos, a Itália é considerada um laboratório que produz tendências políticas depois emuladas internacionalmente. Nos anos 1990, a vocação ganhou novos capítulos, ao antecipar o declínio de partidos tradicionais à direita e à esquerda e a entrada em cena de personagens estranhos às disputas eleitorais ou que haviam sido rejeitados.

A acelerar a ruptura estava a Operação Mãos Limpas, investigação iniciada em 1992 contra esquemas de corrupção entre agentes públicos e empresários. Seu efeito imediato foi o colapso da Democracia Cristã e do Partido Socialista Italiano, duas siglas de massa, e nos anos seguintes viriam a instabilidade crônica e a normalização da ultradireita ?que se transformaram em marcas da política italiana.

"O sentimento antipoli?tico que hoje se espalha no Ocidente surgiu não só na época de Donald Trump e do brexit, mas na Itália um quarto de se?culo antes", escreve o historiador David Broder em "Primeiro Eles Tomaram Roma: Como a Extrema Direita Conquistou a Itália após a Operação Mãos Limpas", recém-lançado no Brasil pela Autonomia Literária.

Embora escrito em 2020, antes de Giorgia Meloni se tornar primeira-ministra, o livro mostra como sua vitória também tem conexões com o terremoto provocado pela operação. "Paradoxalmente, o sentimento antipolítica dos anos 1990, numa fase vista como o fim das ideologias, foi o que acabou por reabilitar um partido originário no fascismo ?e, basicamente, o Irmãos da Itália é a continuidade dele", diz à Folha.

Broder está no Brasil para a Festa Literária das Editoras Independentes (Flipei), em Paraty, onde nesta sexta (25) participa de uma mesa sobre os cem anos do fascismo.

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PERGUNTA - A Mãos Limpas acabou abrindo o caminho para personagens com discurso antipolítica chegarem ao poder. Trinta anos depois, a eleição de Giorgia Meloni também tem raízes nisso?

DAVID BRODER - A Itália, antes da Mãos Limpas e depois da Segunda Guerra, teve partidos estáveis e enraizados. A Democracia Cristã, o Comunista e o Socialista tinham valores claros e representavam os interesses econômicos e sociais dos italianos. O que a operação acabou por fazer foi destruir a força e o enraizamento das legendas e, como efeito imediato, levar Silvio Berlusconi à arena eleitoral.

Houve a troca de partidos de massa por operações de mídia e legendas que não tinham o mesmo alcance. Hoje há um sistema partidário incrivelmente volátil, em que, de uma eleição para outra, os resultados mudam completamente. O Irmãos da Itália teve 4% dos votos em 2018 e, em setembro último, 26%.

A Mãos Limpas foi também um gatilho para a criação de uma aliança na qual pós-fascistas do Movimento Social Italiano (MSI) foram incluídos pela primeira vez. Paradoxalmente, o sentimento antipolítica dos anos 1990, numa fase vista como fim das ideologias, foi, ao mesmo tempo, o que acabou por reabilitar um partido originário no fascismo. E, basicamente, o Irmãos da Itália é a continuidade dele. A ascensão de Meloni não é uma ruptura repentina da ultradireita, é a continuidade de um processo em curso.

P - A Itália é uma vanguarda no processo de normalização da ultradireita? Qual o papel de Berlusconi?

DB - Em muitos países da Europa Ocidental podemos ver um processo análogo, de declínio da tradicional social-democracia e ascensão da ultradireita. Mas nesses casos tem sido um processo mais gradual, enquanto na Itália a Mãos Limpas de repente destruiu todo o sistema político.

O papel de Berlusconi foi muito importante. Em 1993, na primeira eleição direta para prefeito, no segundo turno em Roma, entre Gianfranco Fini (MSI) e o verde Francesco Rutelli, ele declarou apoio a Fini. Isso foi antes de ele entrar na política e um sinal de que iria construir uma nova direita. No seu primeiro governo, em 1994, o MSI teve pela primeira vez membros no ministério ?antes disso teria sido impossível o partido integrar um governo; em 1960 a Democracia Cristã se apoiou no MSI no Parlamento, sem ministros, e isso provocou protestos, greves e grandes conflitos sociais.

P - No livro, o senhor refuta a visão de que a Itália sempre foi atrasada e disfuncional, ao dizer que a instabilidade é algo recente. O que aconteceu?

DB - Sou britânico, e frequentemente britânicos têm essa visão de que a Itália foi sempre caótica. Mas o país era muito bem-sucedido nas primeiras décadas do pós-Guerra. Nos anos 1980, era mais rico e tinha um PIB maior do que o do Reino Unido. Ainda que com muitos conflitos na sociedade, passou de essencialmente agrícola para uma potência industrial.

Um dos clichês sobre a política italiana é dizer que são quase 70 governos desde o fim dos anos 1940. Isso dá a impressão de um caos interminável, mas de 1947 a 1994 todos foram centrados com a DC como partido dominante. Houve muitas mudanças de primeiros-ministros e no gabinete, mas o sistema era estável.

Os anos 1990, com a Mãos Limpas, o fim da Guerra Fria e o avanço da União Europeia, fizeram explodir o equilíbrio. No começo da década, havia mais 4 milhões de pessoas filiadas a partidos e, em 1994, restava 1 milhão. Como a Itália tem ido mal na economia, com estagnação do PIB e salários em queda por mais de 20 anos, isso impulsiona o desejo de sempre chamar um outsider que vai chacoalhar o sistema político. Não só à direita, mas também com [os economistas] Mario Draghi [2021-2022] e Mario Monti [2011-2013].

P - Como diferencia os movimentos de direita de Belusconi, Meloni e Matteo Salvini?

DB - A forma com que essas três forças se diferem em suas identidades históricas não necessariamente tem a ver com suas diferenças de hoje. O Irmãos da Itália vem de uma tradição muito mais fascista do que a Liga ou o Força, Itália, mas isso não quer dizer que seja mais extremo ou antissistema.

Na eleição vimos a Liga com a agenda mais agressiva e populista, menos comprometida com o apoio à Ucrânia. Ela nasceu mais liberal e foi se tornando mais identitária e nacionalista, mais aberta que o Irmãos da Itália a membros de grupos neofascistas, ligada a um conservadorismo religioso. Dez anos atrás eu não diria que a Liga é de extrema direita, mas hoje certamente é.

Enquanto isso, as contradições do Irmãos da Itália são resultado de um partido pós-fascista que está tentando se tornar conservador normal. Já o Força, Itália tenta se posicionar como garantidor pró-europeu da direita. Mas não sou totalmente convencido dessa imagem mais moderada ?basta ver declarações de seus líderes, com teor claramente sexista e racista.

P - Entre o fim do quarto governo Berlusconi [2011] e a vitória de Meloni, o Partido Democrático integrou seis dos sete governos, nem sempre por escolha dos eleitores. Por que a centro-esquerda não convence os italianos nas urnas?

DB - Ela foi aceitando cada vez mais a ideia de que o caminho da Itália para o progresso é por meio de uma integração mais estreita na Europa e que esse processo poderia ser liderado por banqueiros, tecnocratas, figuras sem mandato. Em vez de apresentar programas sociais que mobilizem a classe trabalhadora, a esquerda tem tido uma abordagem tecnocrática da política.

O PD incorporou isso, e para muitos setores isso é sinal de que a Itália se torna mais moderna; mas, para a maioria, os resultados desse processo têm sido insuficientes. A Itália é o único país na zona do euro que tem menor PIB agora do que quando aderiu à moeda [1999].

P - Uma de suas conclusões no livro é que a turbulência política italiana é menos um sinal de atraso e mais uma visão do futuro para outros países. O que esperar?

DB - Estamos vendo uma virada à direita em certos temas, como a questão da imigração, com a UE aceitando a ideia de terceirizar o policiamento a regimes autoritários para reprimir esses fluxos.

Em relação à ultradireita, vimos casos como o da Suécia, na França o partido de Marine Le Pen teve uma votação histórica e grande representação no Parlamento, na Espanha provavelmente veremos o Vox entrar no governo pela primeira vez em 2023.

Em geral, as barreiras entre o que um dia foi a centro-direita e a ultradireita tendem a se dissolver. Vimos isso primeiro na Itália porque já em 1994 eles se aliaram [com pós-fascistas] para governar. Mas o processo mais fundamental que também se espalha é um declínio geral na participação política. Muitos cidadãos não acreditam mais que governos possam produzir prosperidade para eles.

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RAIO-X

DAVID BRODER, 34

Historiador e escritor inglês, é editor da revista Jacobin, mora em Roma e é autor do recém-lançado "Primeiro Eles Tomaram Roma: Como a Extrema Direita Conquistou a Itália após a Operação Mãos Limpas" (Ed. Autonomia Literária. Trad.: Aline Klein. 200 págs, R$ 60).


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