SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Protestar é um ato que demanda vontade política e disposição para eventuais atritos com autoridades. Na China, demanda ainda criatividade. No país em que a internet é vigiada por censores, e manifestações são rapidamente reprimidas, atos como os que se espalharam no último fim de semana até serem controlados por Pequim nesta terça (29) exigem de participantes a criação de estratégias que vão de folhas de papel em branco a equações matemáticas, passando por apps de paquera e passeios com alpacas.
O símbolo mais comum da atual onda de protestos -a maior da China sob a gestão do líder Xi Jinping- é a folha em branco. Seu significado mistura uma série de referências culturais e históricas. Diz-se que a ideia surgiu a partir de uma anedota da era soviética. Um homem abordado por policiais por distribuir panfletos em praça pública revela aos agentes que, na verdade, está distribuindo papéis em branco. Conta ainda que não há necessidade de palavras porque todo mundo sabe o que ele quer dizer.
É possível enxergar outros sentidos para o papel em branco na China, visto que o branco é uma cor associada a funerais. No contexto atual, dialoga com o luto pela morte de dez pessoas em um incêndio em Urumqi, cidade na província de Xinjiang. A tragédia foi o gatilho para a onda de protestos, em parte porque as mortes foram relacionadas às restrições impostas para conter a infecção por coronavírus -isoladas em seus apartamentos, as vítimas não conseguiram escapar das chamas.
A folha em branco também simboliza o silêncio em si, já que o regime chinês, na prática, silencia vozes dissidentes e coíbe a liberdade de expressão. Os papéis foram usados em protestos em Hong Kong quando Pequim promulgou a Lei de Segurança Nacional que, entre outras previsões, proíbe o uso de cartazes e bandeiras com frases pró-democracia. Também foi o primeiro ato de uma manifestação na Universidade Tsinghua, berço acadêmico de vários membros da elite política chinesa.
Variações da folha vazia também apareceram em outros atos. Alguns manifestantes exibiam uma equação matemática desenvolvida por Alexander Friedmann. A pronúncia do sobrenome do físico russo se assemelha na China a "free man" (homem livre) -portanto, uma reivindicação de liberdade.
Outros manifestantes ergueram uma folha em branco com um ponto de exclamação dentro de um círculo vermelho, o símbolo mostrado no aplicativo WeChat, versão chinesa e turbinada do WhatsApp, quando uma mensagem não pode ser enviada ao destinatário por alguma falha técnica.
Usuários do WeChat conseguiram, ainda que temporariamente, driblar a censura para compartilhar informações sobre hora e local de protestos no fim de semana. Para acessar plataformas bloqueadas na China, como Telegram e Twitter, a solução tem sido o uso de VPN, que mascara a localização do usuário.
Até aplicativos de namoro se tornaram ferramentas de comunicação dos manifestantes, na esperança de que estejam sob controle mais brando das autoridades. Por outro lado, segundo relatos à agência de notícias Reuters, a polícia chinesa tem vasculhado os celulares de manifestantes detidos para procurar aplicativos considerados ilegais -o que aumenta o risco nos meios digitais.
Alguns usuários do WeChat também têm escapado da censura ao publicar trechos sem contexto de declarações de líderes como Xi e Mao Tse-Tung, de modo que as falas pareçam expressões de apoio às manifestações.
"Agora o povo chinês se organizou, e ninguém deve mexer com ele. Se você estiver do lado errado, não vai ser fácil de lidar", diz Xi em um discurso amplamente divulgado na segunda-feira (28), mas feito originalmente em 2020 por ocasião dos 70 anos da entrada da China na Guerra da Coreia.
Outra possível manifestação em Urumqi chamou a atenção nas redes sociais, embora não esteja claro se de fato tratava-se de um protesto. Uma mulher caminhou com três alpacas presas em coleiras por uma rua importante da cidade.
A referência é sutil. A alpaca se parece com um animal que só existe nos memes chineses, o grass-mud horse (algo como "cavalo da lama e da grama"). A pronúncia em mandarim do nome do animal fictício, no entanto, é muito parecida com a de um palavrão ("filho da p*"), de modo que se tornou um símbolo do desafio à censura do Partido Comunista.
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