SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em 24 de fevereiro de 1918, a Estônia declarou independência. Dois anos depois, nessa mesma data, Adolf Hitler fundou o Partido Nazista em Munique. Em 1991, esse dia ficou marcado pelo início da fase terrestre da Guerra do Golfo, com tropas dos EUA cruzando a fronteira da Arábia Saudita para entrar no Iraque.

Nenhum 24 de fevereiro do século 20, no entanto, parece se igualar em relevância histórica ao que vimos neste ano, quando o presidente da Rússia, Vladimir Putin, ordenou a invasão da Ucrânia, dando início à crise militar mais grave na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.

Não houve fato político ou econômico de repercussão global ao longo deste ano cujo impacto se aproxime do conflito entre Moscou e Kiev, daí uma das razões da pertinência do recém-lançado "Linha Vermelha - A Guerra da Ucrânia e as Relações Internacionais do Século 21" pela editora da Unicamp.

Como admite Felipe Loureiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP e organizador da obra, apontar as causas, discutir as estratégias militares e projetar os desdobramentos dos embates enquanto a guerra ainda está em andamento são "tarefas arriscadíssimas".

Não apenas, segundo ele, "pela falta de um necessário distanciamento temporal dos analistas diante dos acontecimentos em si, mas sobretudo porque eventos dessa magnitude tendem a produzir consequências para além da curta temporalidade de seu desenrolar". Mas o conflito é de tamanha relevância, com potencial para alterar de forma decisiva o xadrez geopolítico mundial, que a empreitada a quente, com ensaios escritos em tempo curtíssimo para os padrões da academia, justifica-se.

A urgência, porém, não é o único mérito de "Linha Vermelha". O organizador e seus colaboradores --pesquisadores do Brasil e de países como Estados Unidos, Nova Zelândia e Ucrânia-- analisam a guerra sob vários ângulos em textos acessíveis para o público não especializado.

Com quase 400 páginas, a obra está distribuída em quatro seções, e cada uma delas se divide em capítulos. A primeira parte é dedicada aos antecedentes da Guerra da Ucrânia, puxando o fio da história de um passado remoto (século 10) ou de um bem mais recente (anos 1990). A segunda se volta aos impactos do conflito, como o aumento dos refugiados na Europa e a ampliação da insegurança alimentar.

A terceira seção de "Linha Vermelha" se debruça sobre as ligações da guerra com o sistema internacional, com ensaios específicos sobre Brasil e China, entre outros países. E a última discute as implicações de ordem econômica e social a longo prazo.

Assinado por Loureiro, o primeiro capítulo mostra com clareza como o discurso histórico tem sido usado pelos dois lados da disputa para legitimar suas ações diante do público interno e da comunidade internacional. O autor também sobrevoa a complexidade das relações entre os povos que têm ocupado a Rússia e a Ucrânia nos últimos séculos.

"Grande parte desse antagonismo vem, no fundo, de concepções dissonantes de nação nutridas por russos e ucranianos, fruto de uma longa construção histórica", afirma o professor da USP.

Mais adiante, Paul D'Anieri, da Universidade da Califórnia, explica as mudanças ocorridas no interior da sociedade ucraniana a partir de 2014, quando Putin invadiu a Crimeia e passou a incentivar movimentos separatistas pró-Russia na região do Donbass, composto pelas províncias de Donetsk e Lugansk.

É curioso saber, por exemplo, que o distanciamento de Kiev em relação a Moscou ocorreu também na religião. Sob a Presidência de Petro Poroshenko, antecessor do atual mandatário, Volodimir Zelenski, a Igreja Ortodoxa na Ucrânia se afastou do ramo russo, muito ligado ao governo de Putin.

No capítulo sobre as operações militares russas na Ucrânia, Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, coronel da reserva do Exército e mestre em ciências militares, lembra que os especialistas previam a queda das forças de Zelenski em até 96 horas, ou seja, a capacidade de resistência de Kiev foi muito subestimada.

Ele analisa ainda os erros das tropas de Putin nos primeiros meses de batalhas, como a insuficiência do apoio logístico, que deveria amparar os homens em combate.

Há uma preocupação em observar o conflito a partir da realidade brasileira. Isa Lima Mendes e Monica Herz, ambas da PUC-RJ, detalham as ambiguidades e as omissões da política externa do chanceler Carlos França em relação à guerra. "A cacofonia de vozes discordantes mostra que o governo [de Jair] Bolsonaro não foi capaz de produzir uma união interna nem uma posição internacional de credibilidade em torno do assunto", concluem as pesquisadoras.

No texto final do livro, Loureiro afirma ser um equívoco tratar o embate como uma nova Guerra Fria. Existem outros fatores e circunstâncias em jogo que tornam essa classificação problemática, o que não significa que as relações entre EUA e Rússia serão pacíficas daqui para frente. A Guerra da Ucrânia muda as feições do mundo, e "Linha Vermelha" nos ajuda a decifrar os sinais dessa nova face.

LINHA VERMELHA - A GUERRA DA UCRÂNIA E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO SÉCULO 21

Avaliação: Muito bom

Quando: Lançamentos na livraria da Unicamp, em Campinas, nesta quinta (1º), ao meio-dia, e na livraria Martins Fontes (av. Paulista), em São Paulo, na outra sexta (9), às 18h

Preço: R$ 48

Editora: Unicamp (384 págs.)

Organização: Felipe Loureiro


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