SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um relatório da Unesco faz um alerta sobre o mau uso do sistema judicial como ferramenta de ataque à liberdade de expressão, movimento em âmbito global que afeta principalmente jornalistas. Muitas vezes embasada em definições jurídicas imprecisas, esse tipo de ação tem efeito que os autores do estudo descrevem como inibidor.
O direito internacional preconiza que sanções criminais no campo da expressão devem ser aplicados como último recurso, mas as conclusões da Unesco apontam para uma onda global de ações judiciais com jornalistas como alvo principal -em geral, de maneira desproporcional e em resposta à produção de conteúdo crítica a atores e instituições públicas.
Entre as principais acusações criminais a profissionais de imprensa está a difamação, definida no documento como "declaração falsa que, injustamente, cause dano à reputação de pessoa física ou jurídica". A tipificação varia de um país a outro, mas "continua a ser usada para intimidar e suprimir a [liberdade de] expressão em todas as regiões, junto com danos civis desproporcionais e litígios vexatórios, entre outros desafios", diz a Unesco.
O propósito de proteger reputações dos efeitos de uma declaração falsa é legítimo, mas quando transformado em lei pode violar valores previstos em convenções internacionais amplamente reconhecidas, como a Declaração Universal de Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e defendidos por entidades multilaterais, como a própria ONU, OCDE e OEA.
Em nível regional, o relatório da Unesco cita casos de judicialização da expressão na Europa, na África e nas Américas. O exemplo mais recente é o de dois jornalistas da Costa Rica -Ronald Moya Chacón e Freddy Parrales Chaves- processados em âmbito civil e criminal em decorrência de uma reportagem de 2005 que denunciava lideranças policiais por facilitação do tráfico de bebidas alcoólicas. Em setembro deste ano, a Corte Internacional de Direitos Humanos pediu a anulação da condenação e concluiu que a Justiça costa-riquenha impôs medidas intimidatórias a ambos.
O relatório da Unesco cita ainda o levantamento anual do Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ), que contabilizou 294 jornalistas presos. As acusações variam, mas entre as principais tipificações está a difamação. A cifra inclui um caso do Brasil, relativo à prisão de Paulo Cezar de Andrade Prado, fundador do Blog do Paulinho.
Os autores também chamam a atenção para a prática do que no Brasil se convencionou chamar de assédio judicial. Inclui, por exemplo, a abertura de ações que, mesmo sem objetivo real de vencer a disputa, cumprem função de intimidar e silenciar acusados. Há casos em que ações múltiplas com o mesmo fim são movidas em diferentes cortes, provocando uma espécie de cerceamento ao alvo do processo, agravado pelo custo financeiro das defesas e até pelo deslocamento geográfico impraticável para atender a todas as convocações da Justiça.
Embora não seja citado diretamente pela Unesco, o Brasil tem casos emblemáticos nesse sentido, como o da repórter Elvira Lobato, que, devido a uma reportagem sobre os braços empresariais da Igreja Universal do Reino de Deus, publicada em 2008 na Folha, foi alvo de mais de cem ações judiciais em pequenas cidades pelo país -os processos, todos vencidos pelo jornal, foram movidos por fiéis e não contestavam a veracidade de nenhuma informação, mas alegavam danos morais por supostos ataques à fé.
Mais recentemente, em 2020, o escritor João Paulo Cuenca foi processado por dezenas de pastores da mesma denominação depois de uma publicação no Twitter.
A Unesco faz ainda uma recomendação para que haja um olhar mais atento a questões de gênero, em especial o fato de que mulheres jornalistas são alvos mais frequentes de ataques que extrapolam a atuação profissional e buscam atingi-las em âmbito pessoal. Exemplos recentes desse fenômeno incluem a repórter especial da Folha Patrícia Campos Mello e Vera Magalhães, apresentadora da TV Cultura e colunista do jornal O Globo.
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