SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em decisão unânime, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou que juízes de primeira instância voltem a conceder liminares para o ingresso de haitianos no Brasil sem a necessidade de visto.
A medida é válida para os casos de reunião familiar ?em que parte da família, já no país, tenta trazer parentes. Os principais casos envolvem menores de idade cujos pais vieram para o Brasil em busca de melhores condições de vida e agora tentam transferir os filhos.
A espiral de crises políticas, econômicas e sociais que vive o país da América Central, origem de um dos principais fluxos migratórios em direção ao Brasil, fez com que se multiplicassem os pedidos de ingresso de cidadãos no país sem a necessidade de visto humanitário.
O principal argumento, apresentado à Justiça por meio de ações individuais e coletivas no último ano, é o de que o sistema haitiano de concessão de vistos entrou em colapso e já não consegue atender ao tamanho da demanda dos que desejam emigrar. Desde abril, decisões favoráveis a pedidos de dispensa de vistos para haitianos estavam barradas por decisão anterior do STJ. Mas a mais recente decisão da corte, do último dia 7 e publicada nesta quinta-feira (15), muda esse cenário.
Em nota enviada à reportagem, a ministra Maria Thereza de Assis Moura, presidente do STJ, disse que o escopo da decisão reside no fato de que é preciso focar a proteção de crianças e adolescentes, além do direito de convívio familiar, já que muitos dos postulantes são menores de idade.
A decisão, no entanto, foi celebrada com cautela por especialistas em migração. João Chaves, coordenador de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública da União (DPU) em São Paulo, diz se tratar de um marco importante, mas expressa preocupação com os pormenores do texto.
Segundo a decisão, requerimentos para suspender a necessidade de visto poderão ser analisados se os postulantes mostrarem que foram esgotadas todas as possibilidades de obter um visto em Porto Príncipe. Também menciona que juízes deverão pedir perícia para ter certeza de que o caso é de reunião familiar.
"Muitas crianças têm dificuldade de conseguir documentos no Haiti, e já foi comprovado que a via administrativa foi esgotada", afirma. "É fundamental que juízes tenham informações da situação familiar, mas eles devem prestar atenção para não criar exigências abusivas, que inviabilizem decisões."
À Folha o Itamaraty informou que cerca de 150 mil haitianos residem hoje no Brasil. Segundo o ministério, 6.422 vistos foram emitidos pela embaixada de Porto Príncipe em 2020, 5.368 em 2021 e 3.310 neste ano.
Mesmo que transcorrida apenas uma semana desde a decisão do STJ, os efeitos já são observados. Na última semana de dezembro e na primeira quinzena de janeiro dois voos chegarão ao Brasil com ao menos 160 haitianos sem visto, relata Débora Pinter Moreira, advogada e mestre em direito migratório.
Eles já haviam recebido autorização para vir ao país com a dispensa do documento, mas as liminares estavam suspensas pela decisão de abril. Pinter, que esteve no Haiti nos últimos meses para acompanhar a vinda de cidadãos do país, descreve como um calvário a situação de muitas pessoas para obter o visto e relata que histórias de caos social que chegam a seu escritório têm se intensificado.
"Há clientes que, do Brasil, enviam dinheiro para suas famílias comprarem comida, mas os parentes não conseguem sacar o valor, porque bancos estão fechados, ou então, quando o sacam, são roubados nas ruas", segue. "São casos como o de uma criança de 12 anos, cujos pais vieram para o Brasil, e agora está abandonada no país após a avó morrer, tentando vir para cá."
País mais pobre das Américas e sujeito à violência e a desastres naturais, o Haiti viu a situação se agravar após uma série de eventos no ano passado. Primeiro, o assassinato do presidente Jovenel Moïse, o que inseriu a nação em um vácuo de poder. Um mês depois, um terremoto matou mais de 2.000 pessoas.
O país convive ainda com a violência de gangues. Dados do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU mostram que mais de 1.400 pessoas foram mortas e outras mil sequestradas no país só neste ano.
O alto comissário Volker Türk, recém-empossado, descreveu a situação como uma crise multifacetada e prolongada. "É um país onde gangues armadas, supostamente apoiadas por elites econômicas e políticas, controlam mais de 60% da capital, e 4,7 milhões de pessoas enfrentam fome aguda."
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