SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Quando iniciar seu terceiro mandato em 1º de janeiro, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deve se deparar com um cenário de migração e refúgio no Brasil muito distinto do que observou durante sua última estadia no Planalto, há uma década. O desafio é maior.

Em 2010, 619 pessoas solicitaram refúgio no Brasil. Doze anos depois, o número supera 40 mil --considerando os dados até outubro. A cifra é puxada por venezuelanos, mas também agrupa fluxos constantes de angolanos, nigerianos e haitianos, entre outras nacionalidades.

É mínima, porém, a parcela dos que têm o pedido aceito. Neste ano, 32 mil solicitações foram analisadas, mas só 3.800 foram aceitas. A análise dos pedidos também demora: dados oficiais sugerem que o tempo médio seria de dois anos e meio, mas casos em que esse prazo é muito mais longo são comuns.

Os solicitantes então até conseguem acessar direitos básicos, mas vivem em uma situação de insegurança constante. "Ficam em uma espécie de compasso de espera", diz João Chaves, coordenador de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública da União em São Paulo (DPU).

Dados do Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) mostram que o Brasil é o terceiro país das Américas em número de solicitações sem resposta, com 197 mil. Na liderança, estão EUA (1,3 milhão) e Peru (530 mil).

São histórias como a do angolano Patrick Bacisa, 35. No país desde 2019, ele imigrou depois de ficar paraplégico em um ataque a tiros enquanto trabalhava para uma empresa de transportes estrangeira. Com pouco acesso a atendimento médico em Angola, desenvolveu feridas que se agravaram. Na Justiça, tentou obter pensão vitalícia e uma indenização dos empregadores. Até que as ameaças começaram.

"Meu patrão me ameaçou, disse que o dinheiro dele falaria mais alto e que eu iria sofrer. Ligaram-me e disseram que já conheciam minha casa. Fiquei com medo, porque conheço a realidade do meu país."

Agora, Bacisa tenta trazer um primo para o Brasil, para que o ajude com trabalho, tarefas do dia a dia e na recuperação de procedimentos médicos que precisa fazer no SUS. Sem o reconhecimento do status de refugiado, no entanto, não é possível solicitar a vinda do parente.

"É uma vivência de insegurança e incerteza", diz a psicóloga e internacionalista Andressa Martino. "As pessoas não sabem se o que estão solicitando vai dar certo; existe um aspecto psicológico do medo e receio, além da dificuldade de fazer planos de médio ou longo prazo. Eles não pertencem a nenhuma categoria."

O desafio, negligenciado há anos, chega agora ao colo do governo Lula. Para os especialistas, algumas propostas estão na mesa. Uma delas seria aumentar a capacidade de atendimento do Conare, o Comitê Nacional para os Refugiados, ligado ao Ministério da Justiça --pasta sob a batuta de Flávio Dino (PSB). Outra, não necessariamente excludente, seria colocar em prática uma anistia migratória.

A medida, por meio da qual todos os solicitantes no Brasil teriam o refúgio concedido, chegou a ser aventada em 2017, quando foi sancionada a Lei de Migração, mas acabou vetada pelo então presidente, Michel Temer (MDB).

"Ali, perdemos uma importante janela de oportunidade", diz Chaves, da DPU. "O número de pessoas pedindo refúgio cresceu muito nos últimos dez anos, enquanto a capacidade de processamento do Conare não aumentou. É um sistema disfuncional."

À reportagem o senador Paulo Paim (PT), vice-presidente da comissão sobre migrações e refugiados do Congresso, diz ser favorável à proposta de anistia. "Nossa falta de capacidade de acolher essas pessoas fez com que fossem recebidos sem o devido procedimento legal de ampla defesa. Não há estrutura para atendê-los e legalizar sua situação."

Paim também afirma ter apresentado ao governo de transição outras propostas que dialogam com áreas importantes para a futura gestão, como a Operação Acolhida, criada em 2018 para atender à onda de migrantes da Venezuela e considera pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) um trunfo.

A comissão defende que a iniciativa, hoje liderada pelo Ministério da Defesa, volte à alçada da Casa Civil. "Há quase uma unanimidade sobre a Operação Acolhida. É preciso reconhecer o trabalho que os militares fizeram, mas falta investimento no orçamento", diz Paim.

No ano inicial da operação, a Acolhida tinha fundos de R$ 265,3 milhões, segundo dados obtidos pela Folha de S.Paulo por meio da Lei de Acesso à Informação. O ápice da verba foi observado em 2020, com R$ 306,55 milhões. Neste ano, o orçamento foi de R$ 294,15 milhões, e o Orçamento de 2023 prevê que sejam destinados R$ 252,5 milhões.

Especialistas em migração e refúgio descrevem o legado da gestão Bolsonaro na área como ambíguo. Logo na primeira semana de governo, o país se retirou do Pacto Global de Migrações da ONU. Dali, podia-se projetar o desmantelamento da área. Mas não foi bem assim.

"A área que saiu menos chamuscada na parte de direitos humanos no governo Bolsonaro é a de migração e refúgio", diz o professor João Carlos Jarochinski, do mestrado em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima (UFRR). "Não dá para ser um pária internacional em todas as áreas, e essa acabou sendo um importante ativo na política externa e no contato com a ONU."

O setor ajudou a gestão do presidente cessante em ao menos duas áreas: a promoção do trabalho dos militares, que assumiram a liderança da Operação Acolhida --o general Eduardo Pazzuelo, antes de ser ministro da Saúde, por exemplo, exerceu altos cargos na operação-- e na politização do discurso contra figuras consideradas inimigas, em especial Nicolás Maduro, ditador da Venezuela.

Sob Bolsonaro, em 2019, o Brasil facilitou o processo de concessão de refúgios a venezuelanos ao reconhecer que há uma generalizada violação de direitos humanos no país latino-americano, à semelhança do que ocorre com a Síria de Bashar al-Assad. Em 2019, a operação chegou a usar o slogan "Socialismo exclui, Brasil acolhe", em referência ao regime de Maduro.

A corriqueira politização da área de migrações faz com que trabalhadores do setor tenham receio de que a retomada das relações com o país vizinho, uma das primeiras medidas anunciadas pelo futuro chanceler, Mauro Vieira, possa fragilizar o trabalho com refugiados venezuelanos. O governo brasileiro, afinal, teria de seguir reconhecendo, implícita ou explicitamente, que a crise na Venezuela degringolou.

Aloysio Nunes, ex-chanceler no governo Temer, autor da Lei de Migrações e membro do grupo de trabalho de Relações Exteriores do futuro governo, disse à Folha de S.Paulo que os laços com a nação vizinha nunca deveriam ter sido cortados e que a retomada não representa risco para o acolhimento de venezuelanos.

Paulo Paim segue a mesma linha. "Acredito na capacidade de diálogo do presidente Lula e na política do Itamaraty. Devemos defender políticas humanitárias em relação a qualquer país onde os direitos humanos são violados", afirma o senador.

Envolvidos no tema também afirmam que o governo Bolsonaro usou a pandemia de Covid como desculpa para impor uma série de portarias que cerceavam o direito de migrantes entrarem no país --segundo levantamento da ONG Conectas Direitos Humanos, foram ao menos 39.

Camila Asano, diretora de programas da Conectas, afirma ainda que está nas mãos do futuro governo Lula repensar as características do direito ao visto humanitário concedido a cidadãos do Afeganistão, dominado pelo regime fundamentalista do Talibã, e da Ucrânia, em guerra contra a Rússia desde fevereiro.

A concessão foi celebrada por especialistas em refúgio, mas cenas como a de afegãos aglomerados no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, mostraram que conceder o visto, por si só, não garante que essas pessoas acessarão direitos. "Tudo isso deve ser regulamentado, para que essas pessoas cheguem ao país e não tenham de enfrentar desafios de acolhimento", diz Asano.


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