PETRÓPOLIS, RJ (FOLHAPRESS) - Ao aterrissar, passageiros são recebidos por funcionários com traje de proteção completa e submetidos a testes de Covid. Quem apresenta resultado negativo é levado de ônibus a um local de quarentena, onde fica ao menos cinco dias ?e onde crianças de 14 anos podem ser separadas dos pais. Mesmo liberados, viajantes são rastreados por meio de um passe sanitário digital. Diagnóstico do vírus força a estadia em um centro de detenção para doentes.

Assim é a experiência de viajar à China ?ao menos era, até este domingo (8), data em que o país enfim reabre suas fronteiras internacionais. O bloqueio era um dos últimos resquícios da controversa política de Covid zero, estabelecida pelo regime no início da pandemia, em 2020, e largamente flexibilizada em dezembro passado, de forma um tanto abrupta, pouco depois de uma onda inédita de protestos.

Agora, o protocolo determina que passageiros internacionais mostrem apenas um teste de Covid com resultado negativo, obtido até 48 horas antes do embarque. A quarentena é dispensada.

A fronteira com Hong Kong também será reaberta neste fim de semana, e trens ultrarrápidos ligando a ilha e o continente voltam a operar em meados do mês ?próximo ao principal feriado do país, o Ano-Novo Lunar, quando cerca de 2 bilhões de chineses devem viajar, inclusive para o exterior.

O fim das restrições a viagens se dá em meio à explosão da Covid que sucedeu o fim do rígido controle da pandemia pelo Estado ?estratégia que incluía ainda confinamentos em larga escala, limites à locomoção e testes frequentes. Autoridades deixaram de divulgar dados detalhados de infecções, mas a empresa britânica Airfinity Daily estima que a China registre hoje cerca de 2,5 milhões de casos e 16 mil mortes por dia. O regime afirma que o total de óbitos pela doença, desde 2020, é de 5.259.

O apagão de dados não impediu que relatos de caos no sistema de saúde tenham inundado a imprensa ocidental nas últimas semanas: médicos foram forçados a trabalhar mesmo quando infectados, unidades de saúde estão lotadas, funerárias e crematórios tiveram aumentos na demanda.

A situação é especialmente preocupante para idosos ?só dois terços daqueles com mais de 60 anos estão vacinados com a dose de reforço. Os imunizantes chineses, baseados na tecnologia de vírus inativado, também geram imunidade menor em comparação aos de RNA mensageiro desenvolvidos no Ocidente ?e não adotados por Pequim.

Enquanto isso, países como EUA, França, Reino Unido e Israel começaram a impor restrições à entrada de turistas chineses ?algo classificado de "simplesmente irracional" por Pequim, mas de compreensível pela OMS. Isso porque cresce o temor do surgimento de novas variantes, uma vez que altas taxas de transmissão do vírus aumentam o risco de troca de material genético entre as cepas, segundo lembra o infectologista Plínio Trabasso, professor da Unicamp.

Ainda assim, o anúncio da reabertura das fronteiras foi recebido com entusiasmo pelo setor econômico. Ronnie Lins, diretor do Centro China-Brasil, vê a situação como oportunidade de fortalecer o mercado global, que hoje sofre com recessão e desemprego em muitas economias importantes e com altas generalizadas de preços.

Com a metáfora do gigante asiático como "motor do mundo", Lins afirma que a retomada da produção fabril aumenta a demanda por commodities, o que beneficiaria emergentes como o Brasil. Além disso, a regularização da oferta de insumos promete estabilizar diversos setores.

Pesquisadora da Universidade Fudan, em Xangai, Karin Vazquez lembra que a reabertura dá a Pequim a oportunidade de reerguer a própria economia em um momento geopolítico instável. Ela conta que o período da Covid zero levou ao menor índice de confiança dos investidores em uma década e que entre 10% e 15% das empresas estrangeiras saíram do país. O PIB chinês cresceu próximo de 3% no ano passado, quando a meta oficial de 5,5% ?um tombo de cerca de US$ 500 bilhões.

Para Vazquez, o fim do isolamento ainda pode ajudar a resgatar a imagem do país no mundo, em certa maneira fortalecendo o Partido Comunista e o líder Xi Jinping, que recentemente confirmou um inédito terceiro mandato. "Mas tudo dependerá de como o vírus irá evoluir e da capacidade de resposta da China."

Nesse sentido, há três cenários possíveis. O primeiro, otimista, é de que a alta de casos e mortes observada agora seja pontual e que até o segundo trimestre a situação se estabilize, com benefícios para os mercados local e global ?e diretamente para Xi.

O segundo, mais realista, prevê quase 1 milhão de mortes em decorrência do coronavírus ?o prognóstico foi divulgado no mês passado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Hong Kong e é próximo ao de um modelo publicado na revista Science. A cifra, que representa 0,07% da população total do país, faria a China se aproximar dos EUA, líder mundial no ranking, em número de vítimas.

"É o país mais populoso do planeta, e se mesmo 1% das pessoas morrerem é uma escala obscena. Não podemos naturalizar isso", diz o infectologista Jamal Suleiman, do Hospital Emílio Ribas.

Na ponta econômica, Alicia Garcia-Herrero, economista-chefe para Ásia-Pacífico do banco de investimentos Natixis, pondera que impactos maciços nas cadeias de suprimentos dependentes da China só se dariam caso a comoção pelas mortes provocasse nova mobilização popular de grande proporção.

Mas isso é pouco provável, dada a história recente chinesa, segundo Maurício Santoro, cientista político e professor de relações internacionais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). A mero título de comparação, estima-se que o Grande Salto para a Frente, plano de Mao Tse-tung para acelerar a industrialização no final dos anos 1950, e a Revolução Cultural, que buscava eliminar desvios burgueses entre as décadas de 1960 e 1970, tenham resultado na morte de até 40 milhões de chineses.

Por fim, o terceiro panorama imagina que a alta taxa de transmissão na China hoje leve ao surgimento de uma nova cepa alarmante. Ela não seria mais agressiva por si só, já que, como lembra Suleiman, a tendência evolutiva dos vírus é de cada nova mutação diminuir sua letalidade, uma vez que dependem de seus hospedeiros para sobreviver.

Mas a variante poderia tanto ter mais capacidade de infecção quanto, na pior das hipóteses, escapar às vacinas atuais. "Se isso ocorrer, toda essa parede [de proteção] poderia desmoronar", diz. "A China deixa todos em alerta para detectar o mais precocemente possível qualquer anormalidade."

O problema é que um regime totalitário, sem opositores políticos ou liberdade de expressão, dificulta a divulgação de informações desse tipo. "Essa pandemia é, entre outras coisas, um raio-X dos problemas sociais e políticos de cada país. Na China, essa questão é o autoritarismo, que potencializa os efeitos negativos da resposta inadequada à Covid", diz Santoro.

"Pode ser que a situação por lá fique grave o suficiente para o regime chinês pedir ajuda internacional. Mas será que isso vai acontecer realmente? Ou as autoridades vão tentar mascarar esses dados e continuar se apegando a um nacionalismo vacinal?" São as questões políticas que, desde 2020, dificultam o combate à pandemia.


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