SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A crise dos balões entre Estados Unidos e a China escala dia após dia, trazendo consigo ecos da primeira edição da Guerra Fria entre superpotências, que opôs Washington a Moscou de 1945 a 1991.
Primeiro foram os americanos a localizar e interceptar um suposto balão espião chinês vagando sobre seu território no dia 4, e derrubando outros três objetos suspeitos de sexta (10) para cá. Agora, Pequim lembra que seus espaço aéreo foi violado por flutuantes semelhantes mais de dez vezes no ano passado.
Ambos os lados negam o óbvio: a espionagem de rivais é profissão tão antiga quanto a guerra em si, e a crise ganha dramaticidade por abalroar a reaproximação que estava em curso entre Xi Jinping e Joe Biden, por iniciativa do líder chinês. Os balões caem como uma luva para as alas contrárias a Pequim na política americana.
O campo de batalha dessa modalidade específica de ação espiã remete diretamente à Guerra Fria, retomada em versão 2.0 em 2017. Trata-se da região norte do planeta, próxima ao Ártico, a linha de frente da defesa dos EUA por ser o caminho mais curto para bombardeiros ou mísseis intercontinentais carregados com ogivas nucleares.
De 1957 a 1993, uma linha de radares de alerta antecipado corria do Alasca até a Islândia, sendo substituída por um conjunto mais eficaz concentrado apenas no continente americano, com 4.800 km de extensão e 15 estações de radar de longo alcance e 39, de curto.
É operado conjuntamente por EUA e Canadá, unidos no sistema Norad (Comando de Defesa Aeroespacial Norte-americano). Daí que um dos objetos suspeitos foi derrubado sobre Yukon, território canadense, por um caça F-22 Raptor americano.
Além do risco de um ataque, incursões espiãs eram comuns de lado a lado, levando a incidentes graves, como a derrubada de um avião U2 americano sobre a União Soviética em 1960. Os comunistas, claro, tinham o seu sistema de defesa.
Ao longo da Guerra Fria, propostas para reduzir o perigo foram feitas, desaguando num acordo de 1992, o Céus Abertos, no qual 34 países (Rússia e EUA inclusos) permitiam voos de reconhecimento periódicos de aviões dos rivais, estabelecendo uma confiança mútua de que ninguém estaria preparando um ataque iminente.
Donald Trump, o mesmo presidente que lançou a Guerra Fria 2.0 para conter a ascensão chinesa em campos que vão do comércio exterior à autonomia de Hong Kong, achou por bem retirar os EUA do acordo em 2020, acusando os russos de violá-lo.
A falta de regramento ajuda a criar as incertezas, que estão em todos lados: o último acordo de controle de armas atômicas, o Novo Start, está travado porque não há inspeções de sítios nucleares na Rússia por americanos devido à Guerra da Ucrânia.
A crise dos balões também evoca a paranoia que se demonstrava em surtos periódicos na Guerra Fria. Os agora repetidos casos de avistamento encontra paralelos no anticomunismo doentio dos anos 1950 nos EUA.
Naturalmente, dada a natureza digital dos tempos atuais, a febre deverá passar rápido, sem maiores efeitos no imaginário popular como no passado --a ideia de que os soviéticos estavam se infiltrando na sociedade americana para subvertê-la era disseminada, gerando o cancelamento dos suspeitos de simpatia comunista quando essa palavra nem era usada.
O temor era tão espraiado que gerou um fenômeno que guarda semelhanças com o da derrubada dos balões: o dos discos voadores. A sucessão de avistamentos dos óvnis (acrônimo para Objeto Voador Não Identificado) ganhou ares de crise nos anos 1950, tanto que a Força Aérea dos EUA criou um projeto para estudá-los, o Livro Azul.
De 1952 a 1969, ele recolheu e analisou centenas de aparições. Sempre houve os casos inconclusivos ou mal explicados, como de resto a mesma Força Aérea e a Nasa registraram recentemente, mas a ideia disseminada por Hollywood de uma guerra dos mundos iminente tinha mais a ver com explorar o temor do americano de ser atacado por soviéticos.
Nem o Brasil escapou da onda no século passado, e não será surpreendente se agora algum balão acusado de espionagem para Pequim aparecer, digamos, sobre a Amazônia. Mas o fato é que a espuma da disputa política apenas escamoteia a realidade: países se espionam mutuamente.
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