WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - No aniversário de um ano, a Guerra da Ucrânia deixou a China em uma situação geopolítica mais delicada que o previsto.
A despeito das promessas da "parceria sem restrições" com a Rússia --anunciada em meio a juras de amizade entre Xi Jinping e Vladimir Putin durante visita do líder russo às Olimpíadas de Inverno no ano passado--, as dificuldades no avanço das tropas de Moscou e a reação conjunta do Ocidente em apoio a Kiev tornaram os cenários estratégico e diplomático mais complicados para Pequim.
Até o momento, chineses relutam em assumir postura mais firme em relação à guerra. Tradicionalmente, a China não aplica sanções não aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU, colegiado no qual a própria Rússia tem poder de veto, e não se juntou a esforços de Europa e EUA para pressionar comercialmente o país vizinho. Em órgãos internacionais, a diplomacia de Pequim tem preferido se abster em resoluções que condenam a invasão e clamado por moderação.
Os motivos para a postura podem ser, em partes, explicados em números. Doutoranda na Escola Superior de Economia de Moscou, Ana Lívia Esteves diz que, logo no início do conflito, a China se prontificou a ocupar o vácuo deixado por empresas ocidentais que deixaram o mercado russo. A chancelaria chinesa também anunciou que as relações comerciais seguiriam seu "fluxo normal".
Fechadas as estatísticas de 2022, foi possível observar crescimento recorde nas trocas entre os dois países. Dados do regime chinês mostram que o comércio bilateral com a Rússia cresceu 34,3% em relação a 2021, alcançando US$ 190 bilhões (R$ 984 bilhões). O aumento, explica Esteves, foi acompanhado da reação americana que impôs sanções a empresas chinesas com operações na Rússia.
"Para se proteger, alguns setores chineses diminuíram presença na Rússia, sobretudo empresas de chips e microcircuitos que usam componentes americanos. O setor bancário adotou cautela, e algumas instituições financeiras pararam de emitir crédito para transações com os russos", conta, dizendo acreditar que o número é pequeno tendo em vista a expansão na cooperação militar, política e logística.
A guerra tem servido como uma espécie de laboratório para acompanhar as pressões e os embargos sofridos pela Rússia, de modo a aferir a temperatura do que seria a reação global em caso de intervenção militar em Taiwan, diz o coronel da reserva do Exército brasileiro Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, que estudou na Universidade Nacional de Defesa, em Pequim.
Mas a situação não é confortável para o país. Gomes Filho avalia que a preocupação global com a guerra pode levar a uma corrida armamentista. "Não são apenas os europeus que aumentaram os gastos em defesa."
"O Japão planeja dobrar o orçamento militar até 2027. Na Coreia do Sul, que acaba de anunciar o seu novo plano de defesa, uma pesquisa da Deutsche Welle mostrou que 76% da população é favorável ao desenvolvimento de armas nucleares. Isso é contra os interesses chineses na região."
O coronel ressalta que uma participação chinesa no conflito é possibilidade remota. Ele diz que a China também tenta se posicionar diplomaticamente como uma força mais responsável que os EUA e critica os americanos por uma escalada no conflito com o fornecimento de ajuda bélica aos ucranianos.
Há, assim, pouco incentivo para uma mudança no posicionamento chinês quanto à guerra no curto prazo. A exceção, prevê, seria o uso de armas nucleares táticas por Moscou, algo que a China já sinalizou que não deve tolerar e não teria condições políticas para apoiar Putin.
Enquanto isso, a inércia chinesa impactou a comunidade ucraniana que vivia no país. Formada na Universidade Tsinghua e morando em Pequim há quatro anos quando o conflito estourou, a ucraniana Lidiia Zhgyr diz que esperava uma posição mais sóbria e responsável da diplomacia chinesa tendo em vista os inúmeros apelos pela preservação da integridade territorial quando o assunto é Taiwan.
Ela logo se frustrou ao perceber que a narrativa oficial e o discurso na imprensa local seguiam praticamente apenas o lado russo no conflito.
Para tentar influenciar a opinião pública e mostrar o outro lado da guerra, Zhgyr articulou uma rede com mais de cem voluntários que traduzem as notícias da mídia internacional para o chinês.
Ela também se tornou figura frequente na imprensa chinesa, em um esforço de ir além da narrativa oficial. O assédio online e a censura nos meios digitais, porém, a fizeram desistir da empreitada.
"Depois que um post nosso atingiu 900 mil visualizações, plataformas passaram a bloquear tudo que a gente publicava. O volume de ataques online, nos chamando de 'cachorros dos EUA' aumentou e, em junho, meu canal sumiu sem justificativa. O trabalho de meses se perdeu."
Ela conta ter desenvolvido depressão e crises de ansiedade. Decidiu deixar Pequim permanentemente. "A despeito das dificuldades de qualquer estrangeiro na China, gostava muito da minha vida lá."
"Mas se tornou muito difícil viver em meio a pessoas que, em sua maioria, apoiam o que considero o genocídio do meu povo. Não espero uma postura diferente da China no futuro próximo e acredito que eles devem continuar a apoiar silenciosamente a Rússia."
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