SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A invasão americana do Iraque, deflagrada há 20 anos, foi uma das representações mais claras de uma certa ideologia americana. Washington agiu, em parte, com base na noção de que tinha o poder, a obrigação -e o direito- de se impor no mapa-múndi sob a justificativa de exportar a democracia.

A guerra foi também um momento de ruptura daquela mesma ideia. "Ficou bastante claro que poucos dos problemas do Oriente Médio podiam ser resolvidos pelos Estados Unidos, e menos ainda pelo uso da força", diz Aaron David Miller.

Miller trabalhou por duas décadas no Departamento de Estado. Participou, por exemplo, de negociações entre israelenses e palestinos. Hoje, é analista sênior no prestigioso think tank Carnegie Endowment for International Peace,

Ele descreve a invasão do Iraque como uma das maiores projeções de força americana, nas mesmas dimensões das guerras do Vietnã (1955-1975) e do Golfo (1990-1991).

Além de fraturar a noção de que o poder coercitivo dos Estados Unidos garantiria todos os resultados esperados, a guerra iraquiana também rachou seu "soft power", jargão para o poder de convencimento de um Estado. "Aos olhos de muitos ao redor do mundo, nós violamos a lei internacional e destruímos o Iraque", diz Miller. "A credibilidade e a reputação dos Estados Unidos, minadas pela guerra, ainda não foram recuperadas."

Miller se refere às justificativas do governo do republicano George W. Bush (2001-2009) de que o Iraque tinha estoques de armas de destruição de massa. A guerra, naquela narrativa, era uma maneira de proteger o mundo da loucura de um país de um eixo maligno.

Nunca foi encontrada, no entanto, evidência de que o ditador Saddam Hussein tinha tal arsenal. A história mostrou que aquela guerra tinha sido travada sob falso pretexto -às custas de milhares de vidas.

Em vez de pacificar e estabilizar o Iraque, como os EUA prometiam à comunidade internacional, a guerra desmontou o Exército do país, radicalizou militantes e possibilitou a aparição de facções terroristas como o Estado Islâmico (EI). O dano não foi causado apenas pela invasão em si, mas também pela ocupação subsequente, que alienou setores-chave da população e fomentou ressentimentos.

No final das contas, a guerra nem ao menos contribuiu para os objetivos estratégicos dos Estados Unidos. Além de não pacificar o Iraque, a invasão culminou na substituição do regime sunita de Hussein por sucessivos governos xiitas. Sunitas e xiitas são dois ramos do islã cuja rivalidade foi politizada no século 20, a despeito de existir um histórico de convivência sectária.

Depois de 2003, os xiitas governaram o Iraque pela primeira vez em décadas. Isso significou um realinhamento do país no tabuleiro global, aproximando-se do xiita Irã, que é justamente o grande desafeto dos EUA no Oriente Médio. "Não há dúvida de que o principal rival americano teve uma vantagem enorme com a invasão", diz Miller.

O fato de que os Estados Unidos acabaram beneficiando o Irã levou a uma enorme desconfiança entre poderes sunitas na região, afirma o analista. "Criou problemas nas relações com a Arábia Saudita, alguns dos quais seguem sem resolução."

Um dos paradoxos de tudo isso é que, ainda que limitada, a força americana segue sendo fundamental para os regimes do Golfo, afirma Roby Barrett, membro do Cambridge Middle East and North Africa Forum e especialista na região, com décadas de experiência com a diplomacia americana.

"A despeito do que aconteceu no Iraque, todos os países do Golfo sabem que eles ainda dependem de apoio americano, no caso de entrarem em um confronto com os seus vizinhos", diz.

"A invasão foi horrenda. Foi uma loucura na mesma escala da invasão russa da Ucrânia, talvez", diz. "Mas, se você é o Bahrein, o que você pode fazer? Você pode se proteger de uma invasão? Não. Eles podem reclamar o quanto quiserem, podem dizer que a invasão de 2003 prejudicou a nossa credibilidade, mas eles não têm uma alternativa", afirma. "Independente do erro colossal, da carnificina e dos gastos, os EUA ainda têm o luxo de poder tomar decisões ruins."


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