SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Mohammed Mhawi desistiu do Iraque há um mês, após passar por três grandes guerras, uma fome devastadora e um conflito sectário que lhe tomou cinco parentes nos turbulentos anos após a invasão americana de 2003.
Sua motivação, contudo, não foi a violência. "Não é possível suportar o grau de corrupção do país, fora a opressão geral. Tudo tem um preço", afirmou o engenheiro de 53 anos, que tinha um escritório que prestava serviços a pequenas empresas de Bagdá, como reformas e projetos simples.
A autorização para trabalhar custava o equivalente a US$ 100 mensais, diz, mas a propina paga para fiscais não autuarem a empresa chegava a dez vezes o valor. "Achei que as coisas poderiam melhorar com o novo governo, mas está tudo igual. Decidi mudar em dezembro passado para a Turquia", afirma, por chamada de vídeo, de Istambul.
O governo em questão é o de Mohammed Shia al-Sudani, o sétimo primeiro-ministro do Iraque desde que os americanos instalaram o conceito de eleições multipartidárias no país, em 2005. Os 20 anos da guerra que derrubou o regime de Saddam Hussein passam quase despercebidos, tantos são os problemas imediatos, segundo o relato de parentes ao engenheiro.
"Viramos um pedaço do Irã, só isso", afirma ele, que é xiita como a maioria dos iraquianos e dos iranianos, povos que se enfrentaram em uma brutal guerra de 1980 a 1988 ?Saddam governava com punho de ferro a partir de seu grupo tribal sunita, que no mundo é a denominação principal do islã, mas minoritária naquele canto do Oriente Médio.
Sudani chegou ao poder após um ano de brigas faccionais no Parlamento, dividido após a eleição de 2021. É apoiado pelo mais influente dos ex-premiês, Nouri al-Maliki, um autocrata que governou de 2006 a 2014 com as bençãos dos EUA e do Irã, grande rival de Washington.
Também é apoiado pelos milicianos da Coalizão Fatah, grupo que com a aliança de Maliki fez apenas 15% dos 329 assentos naquela eleição. Com uma campanha intimidatória que incluiu assassinatos e atentados a bomba, grupos importantes como os curdos acabaram apoiando um governo de união, evitando a tomada do poder pelos xiitas do poderoso clérigo Moqtada al-Sadr, majoritários.
No ano passado, partidários do líder religioso chegaram a invadir o Parlamento. "Para ser claro, um governo dominado por Sadr teria sido altamente problemático para o Iraque também. Quando o novo premiê assumiu, havia mérito em lhe dar tempo. Infelizmente, Sudani colocou seus interesses à frente daqueles do povo", escreveu o analista iraquiano Omar al-Nidawi, do Instituto do Oriente Médio (Washington, EUA).
O resultado prático dos 20 anos da queda de Saddam, executado em 2007 após três anos preso, é um país disfuncional politicamente e dependente de sua indústria petrolífera para sobreviver. "Isso nos expõe demais a choques externos", afirma Nidawi.
Dono da quinta maior reserva de petróleo do mundo e com uma produção diária de 4,4 milhões de barris, quase o dobro do nível pré-guerra, o país vive em dificuldades. Segundo a ONU, 35% dos jovens até 24 anos estão desempregados, e a pobreza atinge até um terço dos 42 milhões de habitantes.
Mhawi é prova do efeito dessa instabilidade. Seu pai, um membro do Partido Comunista como outros integrantes de sua família, lutou contra o Irã nos anos 1980, sendo ferido em batalha. Ao mesmo tempo, por sua filiação, era dissidente do regime de Saddam.
Em 1996, durante a chamada grande fome, o engenheiro viu um tio morrer desnutrido ?destino de outros 500 mil iraquianos, segundo estimativas da ONU. Sua casa foi danificada por bombardeios americanos em 2003 e, durante a insurgência sectária de xiitas contra sunitas em meio à guerrilha contra os EUA que se seguiu, parentes e amigos foram mortos a tiros andando na rua.
A democracia liberal prometida pelos invasores americanos nunca deu as caras, e a Transparência Internacional classifica o governo do país como autoritário. "Não temos saudade do Saddam, é claro, mas a vida era mais estável para o cidadão comum", diz Mhawi.
A contínua tensão, expressa pelos 50 mortos por violência política registrados em fevereiro pelo monitor Iraq Body Count, e o seguimento de operações militares ocidentais contra alvos eventuais do Estado Islâmico pesam, mas ao fim o que derrotou o cidadão Mhawi foi seu próprio país.
Ele recebeu o convite de um amigo já residente em Istambul e agora quer recomeçar. Fácil, diz, não será, mas o destino lhe reservou uma coincidência: está namorando uma russa que deixou o país de Vladimir Putin por se opor a outra guerra, a da Ucrânia.
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