MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) - O inverno acabou nesta semana na Europa, mas deixou marcas negativas que já afetam a primavera. A combinação de temperaturas altas com escassez de chuvas e neve deixou como rastro um quadro de seca, que coloca em risco plantações e acende o alerta para o que pode ocorrer no verão. No ano passado, o continente teve o verão mais quente da história, com 20 mil mortes associadas às ondas de calor.

Com 1,4°C acima da média do período de referência (1991-2020), esse foi o segundo inverno mais quente da Europa -somente abaixo do que terminou em 2020, 2,8°C mais quente. Em dezembro, a porção central do continente teve picos entre 3°C e 6°C acima das médias.

Foi também uma temporada de pouca chuva e neve, quase ausente abaixo de 2.000 metros. Mesmo nas montanhas mais altas, o acumulado ficou em níveis baixos, como mostraram algumas estações de esqui dos Alpes, que recorrem cada vez mais à neve artificial. Assim, os rios terão pouca contribuição do gelo que é derretido na primavera.

A situação é preocupante especialmente na parte ocidental e sul do continente, com secas já presentes em áreas de França, Espanha e Itália, mas afeta também Reino Unido, Romênia, Bulgária, Turquia e o norte africano, segundo relatório do Observatório Global da Seca, da Comissão Europeia, divulgado em meados deste mês.

Se por um lado o inverno ameno, com a menor necessidade de aquecimento dos ambientes fechados, ajudou governos europeus a driblarem riscos no fornecimento de gás, diante dos altos preços e da menor disponibilidade do produto russo -consequências da Guerra da Ucrânia-, por outro, anuncia dificuldades,

No norte da Itália, os rios terminaram o inverno com fluxo de água entre 30% e 70% menor, e o lago de Como apresenta enchimento de apenas 22%. No rio Pó, o maior do país e importante para agricultura, indústria e consumo residencial, em certos pontos o nível da água caiu mais de 3 metros, índice outrora registrado no verão.

Segundo a Coldiretti, a associação italiana de agricultores, a plantação do arroz, cuja semeadura ocorre na primavera, está prejudicada, obrigando cultivadores a mudarem para soja e trigo. Estima-se um corte de 8.000 hectares no cultivo do arroz, a menor área em 30 anos. O governo anunciou um gabinete de crise para lidar com a seca.

Na França, onde o mês de fevereiro foi o mais seco em mais de 60 anos, os reservatórios de água potável estão 55% cheios, percentual que era de 85% na mesma época de 2022. O governo também monitora, e, no começo de março, quatro áreas do país enfrentavam restrições de consumo, com proibição de encher piscinas e irrigar gramados.

Na Espanha, a Catalunha, onde fica Barcelona, enfrenta 25 meses sem chuvas significativas, e as autoridades estipularam cortes no consumo de água que vão de 8% para as casas até 40% para a agricultura. Em Sau, a torre de uma igreja virou atração após emergir com a seca de um reservatório.

"Chegamos à primavera com uma situação muito crítica em algumas regiões europeias", diz à Folha Andrea Toreti, coordenador do Observatório Global da Seca. Coautor do relatório, o especialista explica que o problema se agravou devido à repetição de eventos negativos nos últimos cinco anos.

"Acumulamos um déficit hídrico importante, que não foi recoberto, e de novo tivemos um inverno seco. Em algumas partes da Europa, estamos assistindo a uma recorrência de eventos assim com frequência sempre maior", afirma. "Algo claramente em linha com o que as projeções climáticas nos mostram para as próximas décadas."

A seca tem ainda agravado outro problema na Espanha: a temporada de incêndios florestais. Nos últimos dias, o fogo destruiu 4.000 hectares de floresta e forçou 1.700 moradores a deixarem suas casas. As chamas continuam, e as condições climáticas dificultam seu controle.

Segundo o relatório, as previsões que vão até maio alertam para uma primavera mais quente que a média, enquanto há incerteza em relação às chuvas. Se não chover nas próximas semanas, outras ameaças se anunciam, com danos para colheita do trigo, produção de energia hidroelétrica e para os próprios ecossistemas.

Previsões mais precisas para o verão dependem das próximas semanas. Em 2022, europeus tiveram temperatura média entre junho e agosto 1,3°C maior que o período de referência (1991-2020). Ou seja: o verão mais quente da história.

As ondas de calor, que quebraram recordes nos termômetros de vários países -o Reino Unido teve 40°C pela primeira vez-, causaram secas, incêndios e estão associadas a 20 mil mortes por razões como insolação e ataque cardíaco.

Chama a atenção o fato de que os dez verões mais quentes no continente tenham ocorrido todos a partir de 2003, com o segundo e o terceiro mais intensos registrados, respectivamente, em 2021 e 2018. "O que podemos certamente dizer agora é que os modelos indicam a tendência de um verão mais quente que o normal", afirma Toreti.

O cientista ecoa conclusões do relatório do painel científico do clima da ONU (IPCC, na sigla em inglês), divulgado no último dia 20. Apesar de a seca na Europa ser um fenômeno cada vez mais frequente e requerer medidas de adaptação, ainda há espaço para mitigação.

"Temos que fazer os dois. Mitigar significa reduzir o nível global de emissão de gases do efeito estufa para conter o aquecimento dentro de limites aceitáveis. Mas devemos desenvolver estratégias para cada setor, para limitar impactos de eventos extremos como a seca."


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