SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em 1980, a ex-guerrilheira nicaraguense Mónica Baltodano esteve no Brasil a convite de Frei Betto, conheceu Luiz Inácio Lula da Silva e o convidou para celebrar em seu país o primeiro aniversário da Revolução Sandinista, que derrubara a ditadura de Anastasio Somoza.
Meses depois, ela receberia em Manágua o então líder sindicalista brasileiro, que foi apresentado a integrantes da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e ao socialista cubano Fidel Castro.
Nesta semana, Baltodano volta ao Brasil com um objetivo bem diferente: convencer setores da esquerda e do governo Lula de que o atual regime sandinista, capitaneado por seu ex-aliado Daniel Ortega, é uma ditadura tão violenta ou até pior que a de Somoza.
Baltodanofoi uma das três mulheres nomeadas comandantes da revolução em 1979 e ocupou cargos de peso no Executivo e no Congresso. Agora, ela é parte do numeroso grupo de companheiros de Ortega que o abandonaram após se decepcionarem com seus movimentos autoritários. Assim como outros opositores, foi perseguida: em fevereiro, teve a nacionalidade cassada, e os bens, confiscados.
A ativista falou à Folha por telefone, da Costa Rica, onde vive exilada desde 2021, dias antes de sua viagem a convite do Movimento Esquerda Socialista, uma ala do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), e de um comitê de nicaraguenses e brasileiros contrários a Ortega.
Ela chegou neste domingo (9) a São Paulo e também visitará Brasília, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Não encontrará Lula, que estará na China, mas sua agenda prevê conversas com parlamentares e líderes políticos, inclusive petistas, além de palestras em universidades.
PERGUNTA - A senhora já encontrou Lula desde que se tornou opositora de Ortega?
MÔNICA BALTODANO - Sim. Em 2000, em um Foro de São Paulo realizado na Nicarágua, conversei com ele e expressei minha rejeição à guinada de Ortega [líder sandinista, ele havia assinado um pacto com um partido rival para favorecer sua eleição]. Nessa ocasião, Lula não esteve de acordo com minha crítica.
P. - Qual é o objetivo da sua atual visita?
MB - Quero contar por que mudei de lado e trazer informações sobre o que está acontecendo na Nicarágua, que encorajem a abandonar posições ambíguas.
P. - Uma relação pessoal de Lula com Ortega ou do PT com o sandinismo pode explicar a falta de uma crítica enfática?
MB - É inadmissível que uma relação pessoal seja fundamento para uma política de Estado. Além disso, eles nunca foram amigos íntimos. Quando Lula esteva preso, não houve demonstração de solidariedade por parte de Ortega. Lula não está fazendo uma leitura adequada do que está acontecendo na Nicarágua. Não teve a compreensão de outros presidentes latino-americanos, como Gabriel Boric [do Chile] e Gustavo Petro [Colômbia], de que ficar em silêncio diante de um regime tão brutal é uma vergonha.
P. - Que efeitos uma declaração mais contundente de Lula poderia ter?
MB - Ortega tem se mostrado indisposto ao diálogo ou à busca de uma solução pacífica, mas um governo como o de Lula, se o condenar ou conclamar a mudar de conduta, pode influenciar dessa atitude fechada para uma saída do conflito.
Nenhum ditador deve receber o apoio de uma força política ou de um governo que se qualifique como democrático. A esquerda deve se opor claramente a violações brutais de direitos humanos, mesmo que o presidente [em questão, alvo das críticas] se descreva como de esquerda.
P. - A senhora considera que o regime de Ortega não é de esquerda?
MB - Não é mais a Frente Sandinista, é uma "frente orteguista". Ele não representa a luta dos povos, suas políticas são o contrário disso. É um governo patriarcal, extrativista, que tem discurso anti-imperialista, mas que, até a sublevação de 2018, tinha excelentes relações com os EUA.
P. - Lula propôs ao Conselho de Direitos Humanos da ONU um diálogo construtivo com Ortega. Acha possível?
MB - Vemos isso de forma positiva, mas tem que haver uma rejeição ao que Ortega está fazendo. Ortega não entende mensagens ambíguas.
P. - A senhora diria que a maioria dos ex-companheiros de Ortega se voltou contra ele?
MB - Ninguém do gabinete dos anos 1980 respalda Ortega hoje. Ele conta com o apoio de um setor fanatizado que o trata como se fosse um deus. Tem um caráter messiânico, controla todos os poderes por meio de mecanismos mafiosos, chantagem, pressões.
P. - Foi duro para a senhora mudar de lado?
MB - Foi e continua sendo duro constatar que os sonhos pelos quais tantos jovens deram a vida nos anos 1960 e 1970 foram traídos. Lutamos para que houvesse democracia, liberdade, justiça, direitos das mulheres, dos indígenas. Tudo isso foi colocado de lado em função de um projeto ditatorial com traços stalinistas e fascistas. É uma ditadura cruel, que tem feito sofrer demais as famílias nicaraguenses, não só com repressão direta, mas com acúmulo de riqueza sem precedentes.
P. - A senhora conviveu de perto com Ortega. O que mudou?
MB - Ele centrou sua vida na obsessão do poder pelo próprio poder. A conversão dele e de todo seu entorno em capitalista, os acordos com o grande capital, tudo isso acabou os distorcendo.
P. - A senhora foi presa e torturada na ditadura de Somoza e é perseguida pelo regime de Ortega. Vê semelhanças entre as duas ditaduras?
MB - Sim. E devo dizer que este ditador está enfrentando um povo desarmado. Somoza foi um genocida, mas enfrentava uma luta armada, e ainda assim a repressão agora é pior. Ortega fez muito mais presos políticos, e as condições de suas prisões são piores do que nunca. Ele expatriou 317 nicaraguenses, tirou a pensão dos aposentados, tudo isso sem nenhum processo judicial.
P. - De que maneira a expatriação afetou sua vida?
MB - A quantidade de dificuldades que ele criou para nós é incomensurável. É como se não existíssemos: fomos apagados do registro populacional, nossos sobrenomes foram retirados de nossos filhos, eles ordenaram que os bancos fechassem nossas contas, se apropriaram de nossas casas. Eu sobrevivia do aluguel da minha casa na Nicarágua e da aposentadoria. Agora tenho renda zero, e o custo de vida na Costa Rica é alto. Eles foram à minha casa e falaram para o inquilino: "Agora não é mais da Mónica, é nossa. Vai ter que pagar aluguel para nós".
P. - O governo brasileiro se dispôs a oferecer refúgio aos perseguidos por Ortega. O Brasil é visto como uma possibilidade para os nicaraguenses?
MB - Alguns países ofereceram a nacionalidade, mas não criaram um mecanismo especial, não avisaram as embaixadas. Isso dificulta que os expatriados considerem migrar, pois correm o risco de ficar anos esperando pela documentação. Temos avaliado opções, mas não podemos nos mover até que esteja claro como vai funcionar.
RAIO-X | MÓNICA BALTODANO, 68
Militante da FSLN desde os 18 anos, foi uma das três mulheres comandantes da guerrilha que derrubou a ditadura Somoza em 1979. Foi vice-ministra e ministra, deputada pela FSLN e, na oposição, pelo Movimento pelo Resgate do Sandinismo. Cientista social, escreveu a obra de quatro volumes "Memorias de la lucha sandinista". Vive exilada na Costa Rica e está entre os mais de 300 ativistas que perderam a nacionalidade e os bens por ordem de Daniel Ortega.
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