SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Um ano, dois meses e três dias depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, a China enfim fez um movimento objetivo no tabuleiro geopolítico bagunçado pela guerra de seu aliado Vladimir Putin. Não é pouco, mas também não é garantia de paz à vista.

Durante todo esse período, Xi Jinping foi pressionado pelo Ocidente para usar sua influência sobre Putin para tentar abrir negociações de paz. Usando a proverbial paciência chinesa, calcada em quatro milênios de prática política, o líder esperou.

Agora, usa o impasse militar em solo para fazer a sua jogada, ao conversar por telefone com Volodimir Zelenski e enviar um representante para negociar ao vivo em Kiev. É bastante improvável que tal ação tenha sido feita sem consultas com Putin, ainda mais após a renovação de votos da "amizade sem limites" entre Moscou e Pequim com a visita do chinês ao colega no mês passado.

Xi aproveita sua posição única de país inescapável nas relações internacionais, dado o peso de sua economia, a maior parceira comercial de cerca de 120 dos 193 países membros da ONU, e a aliança com a Rússia -estabelecida formalmente 20 dias antes do início da guerra.

A especulação ocidental básica, de que Pequim apoiou o conflito visando um precedente para a retomada de Taiwan "manu militari" só para se arrepender depois, é tentadora, mas pouco alicerçada em fatos. Assim como a ideia de que os chineses enviaram, ou vão enviar, armas secretamente para o aliado.

Não que isso não possa ocorrer ou ter ocorrido, mas o comportamento de Xi sugere mais um jogo em seus termos, o que é péssima notícia para a beligerância ocidental liderada pelos Estados Unidos e acompanhada pelos membros mais agressivos da Otan (aliança militar ocidental).

Só no primeiro ano da guerra, os EUA responderam por cerca de 75% da ajuda militar direta a Kiev, segundo o Instituto para a Economia Mundial de Kiel (Alemanha). O bolo de quase US$ 50 bilhões, contudo, equivaleu a apenas 6% do orçamento de defesa de Joe Biden, o que sugere um bom negócio.

Central para o telefonema de Xi é a situação em campo. A Rússia falhou em conquistar o que lhe falta ocupar da província de Donetsk durante a violenta campanha de inverno (do Hemisfério Norte) na região. O "moedor de carne" de Bakhmut já é visto como um dos mais mortais enfrentamentos diretos desde a Segunda Guerra Mundial.

Moscou está perto de tomar a cidade estratégica há meses, e tudo indica que poderá fazê-lo. Mas há sérias dúvidas, entre analistas, sobre a viabilidade da continuidade da ofensiva na região, uma das quatro anexadas ilegalmente por Putin em setembro e aquela em que exerce menos controle.

Por outro lado, a esperada contraofensiva ucraniana, que observadores apontam como iminente e focada provavelmente na região de Kherson (sul), visando implodir a ponte terrestre estabelecida pela Rússia entre seu território e a Crimeia anexada em 2014, também levanta dúvidas.

Primeiro, os russos tiveram bastante tempo para se entrincheirar, e imagens de satélite mostram camadas sucessivas de linhas defensivas ao longo da frente. Segundo, a Ucrânia não parece ter força militar para retomar territórios de forma decisiva, apesar do reforço com algumas dezenas de tanques ocidentais de segunda mão e novos mísseis americanos.

Há, claro, a possibilidade de que Xi esteja ganhando tempo para Putin, justamente pelo temor de algum sucesso mais efetivo dos ucranianos, a exemplo do que aconteceu no segundo semestre de 2022 em Kharkiv (norte). Mas não é o cenário mais provável.

O impasse favorece a ação chinesa pela paz. Ganham com isso os atores secundários que quiseram aproveitar a crise para sair bem na foto, o francês Emmanuel Macron e o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva à frente.

Ambos estiveram recentemente com Xi e falaram sobre suas ideias pela paz, sendo devidamente criticados no Ocidente, até por lhes faltar musculatura diplomática para liderar o empreendimento. O papel de Lula foi especialmente vexatório, dado o vaivém de opiniões sobre o conflito ao gosto da plateia.

Como coadjuvantes do chinês, contudo, ambos poderão dar um certo troco nos críticos, aparecendo como promotores da paz, ainda que a reboque. Todos, afinal, apresentaram algum tipo de proposta de paz, sendo a de Pequim a mais salomônica, o que evidentemente desagrada a Kiev.

Seja como for, qualquer avanço, seja para congelar a guerra nas linhas do que ocorreu na península coreana em 1953 ou para uma paz mais duradoura, será um grande tento para Pequim na Guerra Fria 2.0 que trava com Washington.


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