SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Há quatro meses, o vice-presidente de El Salvador disse à Folha de S.Paulo que, se dependesse de seu governo, o pequeno país da América Central viraria um exportador da controversa estratégia de combate às gangues por meio de estados de exceção. O prenúncio parece estar se concretizando.
Félix Ulloa usou como exemplo o Haiti, que vive uma espiral de crise humanitária. Mas o principal exemplo vem da vizinha Honduras, onde há quase cinco meses parte das garantias constitucionais está suspensa sob a justificativa do combate à violência.
Por decisão do governo de Xiomara Castro, a primeira mulher a presidir Honduras, o país vive sob estado de exceção desde 6 de dezembro. Direitos constitucionais estão suspensos em 235 dos 298 municípios do país, incluindo a capital Tegucigalpa -em El Salvador, medida semelhante em todo o território nacional passa de um ano.
Ao lado da Guatemala, os dois países compõem o Triângulo Norte, uma das regiões mais violentas do mundo. Essa parte da América Central se converteu, aos olhos do narcotráfico internacional, em um corredor de drogas para os EUA, com o transporte feito por grupos criminosos chamados de maras ou pandilhas, que controlam a vida da população pobre de suas respectivas nações.
Diferentes governos aplicaram versões da política de linha dura nas últimas décadas, mas o uso do estado de exceção nessa escala é inédito. O instrumento costuma ser usado em situações pontuais e por um período de tempo determinado -após um terremoto, por exemplo-, não em problemas de larga escala e sem data para acabar.
Sob o pretexto do combate às maras, porém, Honduras restringiu a liberdade de movimento e reunião e deu carta branca para a polícia entrar nas casas e capturar pessoas sem mandado de prisão.
Com essas regras, a repressão tem o potencial de atingir níveis que não seriam possíveis com o pleno funcionamento das instituições -levando a resultados como o de El Salvador, onde a taxa de homicídios caiu 85% em quatro anos à custa de encarceramento em massa, violações de direitos humanos e derrocada democrática.
"O problema da violência na América Central é produto de causas estruturais que não foram resolvidas e se agravam pelos níveis de corrupção que existem nas instituições públicas", afirma Jose Miguel Cruz, cientista político na Universidade Internacional da Flórida.
Ao limitar a possibilidade de defesa, o estado de exceção dá poder quase ilimitado ao Estado para decidir sobre a vida das pessoas, diz o pesquisador, além de aumentar a presença das forças militares. Em Honduras, as Forças Armadas foram as responsáveis por cinco golpes de Estado no século 20.
A influência do narcotráfico na polícia e na política -fenômeno que faz o país ser considerado um narcoestado por especialistas- torna a estratégia problemática. "Não é nenhum segredo que há pessoas dentro do atual governo que seguem vinculadas com o narcotráfico", afirma Cruz. "A corrupção enraizada nas estruturas é parte do problema."
Apesar da tentativa de copiar o modelo salvadorenho, Honduras difere do vizinho em relação à conjuntura política. Com uma das taxas de popularidade mais altas do mundo, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, neutraliza, um a um, os contrapesos do Estado.
Começou com a Assembleia Legislativa, onde seu partido conquistou 56 das 84 cadeiras. Passou pelo Judiciário, quando destituiu juízes da Corte Constitucional, e terminou com a imprensa -neste mês, o El Faro, o maior jornal de El Salvador, anunciou que mudaria toda sua estrutura administrativa e jurídica para a Costa Rica.
"El Salvador tem feito um grande esforço para controlar as instituições. Em Honduras, isso é um pouco mais complicado porque a oposição ainda é forte", afirma a costa-riquenha Carolina Ovares-Sánchez, doutoranda na Universidade Nacional de San Martín, em Buenos Aires.
Xiomara Castro não tem maioria na Casa Legislativa. Em 2021, 50 de seus correligionários foram eleitos para o Congresso Nacional, que tem 128 assentos. Ela lida com dissidências dentro do próprio partido --um imbróglio que seu marido tenta resolver. Manuel Zelaya, ex-presidente hondurenho deposto no primeiro golpe de Estado na América Central desde o fim da Guerra Fria, em 2009, é muito influente.
"Houve um giro em suas promessas de campanha", afirma Ovares-Sánchez. A presidente de esquerda prometia recuar da política de seu antecessor, Juan Orlando Hernández, e desmilitarizar as forças de segurança. Uma vez no poder, ela manteve a Polícia Militar de Ordem Pública criada por Hernández e aparentemente abandonou a ideia de uma força de segurança com viés comunitário.
A análise é compartilhada pela jornalista hondurenha Jennifer Ávila. "Seguimos como um dos países mais violentos do mundo. Já há denúncias de direitos humanos. O que temos visto segue sendo a estigmatização dos bairros marginalizados."
Fundadora do nativo digital Contracorriente, Ávila se tornou em março a primeira hondurenha premiada na categoria de excelência do Prêmio Gabo, a principal premiação de jornalismo da América Latina. A láurea reconheceu a qualidade do trabalho de seu veículo, mas também o esforço de fazer jornalismo em um país com corrupção endêmica e pouco histórico de imprensa independente.
No horizonte, há ainda a possibilidade de a controvérsia estratégia de El Salvador e Honduras se espraiar. Ainda que o presidente da Guatemala, Alejandro Giammattei -que empreende uma cruzada contra a imprensa e o Judiciário- não dê sinais de que aplicaria medida semelhante, a oposição o faz.
Zury Ríos, uma das líderes nas pesquisas de opinião para as eleições de junho, já mostrou que simpatiza com a estratégia. Filha do ex-ditador militar Efraín Ríos Montt, condenado por genocídio em uma sentença depois anulada, ela afirmou que, se eleita, vai se inspirar no modelo salvadorenho, "que alcançou um impacto contundente na área de segurança".
"Não é uma questão ideológica de esquerda e direita, ao menos da América Central. É mais uma questão de preservar os autoritarismos, de controlar as instituições, as Forças Armadas. É uma receita que funciona bem aos ditadores", afirma Jennifer Ávila.
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