SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Foi com um abraço e dois beijinhos que o príncipe da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, recebeu nesta sexta-feira (19) o ditador da Síria, Bashar al-Assad, na cúpula da Liga Árabe que seu país organizou em Jiddah. O gesto entre os líderes árabes de certa forma marca o fim do isolamento diplomático imposto a Assad desde a eclosão da guerra civil em seu país, em 2011, pelo menos em nível regional.

A Síria havia sido expulsa do bloco no mesmo ano em que iniciou a violenta repressão contra opositores que queriam tirá-lo do poder, na esteira da Primavera Árabe. Desde então, mais de 350 mil pessoas morreram no conflito, e o ditador se tornou um pária, acusado de massacrar seus próprios cidadãos.

Por anos, diversas nações da região do Golfo, incluindo a própria Arábia Saudita, apoiaram os rebeldes contra o líder do país. Em 2020, porém, os combates arrefeceram, e o Exército sírio, apoiado por Rússia e Irã, retomou o controle da maior parte do território. Na prática, Assad já ganhou o conflito --ele enfrenta resistência apenas ao norte, na fronteira com a Turquia, mesma região que sofreu o terremoto devastador em fevereiro que ajudou em certa medida o líder a retomar laços com o resto do mundo.

As 22 nações que formam a Liga Árabe têm muitas razões para fazer do ditador um aliado. Dos mais de 14 milhões de cidadãos que deixaram o país durante o conflito civil, cerca de 5,5 milhões vivem em cinco Estados vizinhos: Egito, Iraque, Jordânia, Líbano e Turquia. Destes, só o último não faz parte da liga, que condicionou a volta de Damasco ao grupo ao retorno desses refugiados ao seu país de origem.

Outro dos requisitos para a aproximação é o compromisso com um combate maior por parte do ditador à produção e contrabando de anfetaminas na Síria, uma indústria que cresceu tanto na última década a ponto de se tornar uma das maiores preocupações dos países do Golfo hoje. A ditadura se tornou um polo de exportação de captagon, droga conhecida como "cocaína dos pobres". Por fim, as nações da região veem na reconciliação uma forma de limitar a influência do Irã. Assad, aliás, encorajou essa visão em seu discurso na cúpula, afirmando que o "passado, o presente e o futuro" de seu país eram "o pan-arabismo".

Do lado da ditadura, a reaproximação é bem-vinda. A guerra destruiu a economia síria, danificando infraestruturas cruciais. O isolamento representa o bloqueio de importantes vias de financiamento, e o regime sem dúvida se beneficiaria de investimentos externos, ainda que as muitas sanções a que foi submetido pelos Estados Unidos certamente dificultem o estabelecimento de relações comerciais.

A maior articuladora desse movimento com os demais países árabes foi a anfitriã da cúpula, a Arábia Saudita. O protagonismo internacional que a maior produtora de petróleo do mundo ganhou com a crise energética gerada pela Guerra da Ucrânia veio acompanhado de ambições diplomáticas equivalentes.

Em março, a monarquia autoritária surpreendeu analistas ao retomar laços com o Irã depois de uma ruptura de sete anos; em maio, foi a vez da Síria. Seu investimento no evento desta sexta-feira era visível em Jiddah, cujas principais ruas foram decoradas com bandeiras de todos os Estados-membros da Liga Árabe, incluindo, claro, a Síria --o jornal Al-Riyadh chamou o encontro de "cúpula das cúpulas".

Foi Riad, aliás, que convidou o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, para participar da cúpula, não a organização, segundo a agência de notícias AFP. Em 2022, MbS, como bin Salman é conhecido, intermediou a libertação de dez prisioneiros ucranianos capturados pela Rússia durante a guerra, ação supostamente possibilitada pela proximidade do príncipe com o líder russo, Vladimir Putin. Já durante a cúpula, MbS disse que seu país está pronto para mediar a paz entre Moscou e Kiev.

Ao discursar no evento, ele afirmou que o retorno de Damasco ao grupo representava uma virada de página após "dolorosos anos de luta" e que Riad "não deixaria a região se tornar um campo de disputas". Vale notar que, se Assad é visto como um pária, MbS não é exatamente benquisto no cenário global --ele é acusado de cometer uma série de infrações contra os direitos humanos, incluindo ter mandado assassinar o jornalista saudita Jamal Khashoggi, um crítico do regime, no consulado do país em Istambul.

Nem todos os países árabes, porém, estão tão dispostos quanto a Arábia Saudita a restaurar os laços com Assad. O Qatar, por exemplo, declarou que não normalizaria as relações com o regime, ainda que tenha ressaltado que isso não seria um obstáculo para a reintegração do país à Liga. Seu xeque, o emir Tamim bin Hamad al-Thani, foi embora do evento antes que o ditador pudesse discursar --em 2018, ele afirmou que a região não toleraria um "criminoso de guerra" como o líder sírio.

Zelenski, por sua vez, dirigiu palavras duras aos presentes. Em pronunciamento, acusou alguns deles de ignorar as atrocidades cometidas pela Rússia --um dos maiores aliados da Síria-- em seu território. "Infelizmente, há alguns no mundo e aqui, entre vocês, que fecham os olhos para anexações ilegais."

Foi a primeira vez que o líder ucraniano viajou ao Oriente Médio desde o início do conflito, há quase 15 meses. A visita faz parte de uma tentativa de Zelenski de angariar apoio à Ucrânia entre países do Sul Global, movimento visto também nas solicitações por encontros bilaterais com Brasil e Índia no G7.

Até aqui, os países do Golfo vinham buscando manter uma postura neutra no conflito a despeito da pressão do Ocidente para reforçar o isolamento da Rússia, membro da OPEP+ (Organização dos Países Exportadores de Petróleo e seus aliados).


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