SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Essa é a primeira vez de Dolkun Isa, 55, no Brasil. E um broche em seu paletó com a bandeira do Turquestão Oriental, um crescente e uma estrela brancos sob o fundo azul, entrega o motivo da visita.

O nome se refere à área reivindicada como independente pelos uigures, povo muçulmano, e que hoje corresponde a Xinjiang, região autônoma no extremo oeste da China que representa um dos fatores mais sensíveis da política doméstica e externa do regime comunista.

"Somos uigures. Temos uma longa história. Temos nossa identidade, nosso próprio país e nossa própria religião. Não temos relação com a cultura ou a língua chinesas. Tudo que estamos tentando fazer é manter nossa identidade a salvo", diz Dolkun à Folha.

Há quase três décadas na Alemanha, onde obteve asilo político após ser tachado de terrorista por Pequim, ele preside o Congresso Mundial Uigur, organização que, ao lado de outros grupos de direitos humanos (e de países como os EUA), acusa a China de genocídio contra uigures.

Dolkun começou um giro por países da América do Sul, com pontapé inicial no Brasil. O objetivo é tentar dialogar com governos e parlamentares para tirar da inação as nações do Sul Global, que pouco ou nada expressam sobre as acusações de violações de direitos humanos na China. De São Paulo, parte para Argentina e Chile.

Para o ativista, os três países têm a obrigação moral de se manifestarem sobre os uigures. "Países da América Latina tiveram experiências muito ruins com ditaduras militares e desaparecidos políticos. Temos milhares de uigures desaparecidos. Esses governos têm obrigação moral de falar em alto e bom som, não podem silenciar."

Sendo assim, o silêncio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre a agenda de direitos humanos na China, país que visitou recentemente e com o qual fechou acordos econômicos, causou uma frustração. "Estamos desapontados, sim. Isso não pode ser ignorado em nome dos negócios. É inaceitável", diz Dolkun.

"Talvez alguns líderes pensem que problemas relacionados a direitos humanos existam em todos os lugares. E isso é verdade, inclusive nas democracias. Mas o que o governo chinês comete não é tão simples assim. Trata-se de genocídio."

O Brasil foi um dos países que se abstiveram, por exemplo, em uma votação no Conselho de Direitos Humanos da ONU em agosto passado para que fosse iniciada uma rodada de debates sobre a situação dos uigures. A moção sobre o assunto foi rejeitada.

Ativistas como Dolkun acusam o regime chinês de deter mais de um milhão de uigures em espaços que Pequim denomina de campos de reeducação. Ali, além da detenção arbitrária, eles estariam sujeitos a violações de direitos humanos como tortura e trabalho forçado.

O líder uigur afirma que a repressão endureceu sob Xi Jinping, no poder do Partido Comunista Chinês desde 2013 e o primeiro a liderar o gigante asiático por três mandatos consecutivos. "As políticas de discriminação e assimilação não são novas. Mas desde que Xi chegou ao poder, elas se transformaram em prática de genocídio."

Procurada pela reportagem, a embaixada da China enviou como resposta uma cópia de declarações de Wang Wenbin, porta-voz da chancelaria chinesa, durante entrevista coletiva no último dia 16, ao ser questionado pelo Global Times (espécie de porta-voz do Partido Comunista) sobre acusações de genocídio feitas por Washington.

"As acusações carecem de base factual e distorcem as políticas étnicas e religiosas da China", disse Wang Wenbin na ocasião. "São inteiramente motivadas por viés ideológico." Ele também afirmou que "todos os grupos étnicos na China têm pleno direito à liberdade de crença religiosa" e que "Xinjiang desfruta de estabilidade social, desenvolvimento econômico e solidariedade étnica".

As acusações contra Pequim ganharam coro no ano passado quando, após intensa pressão, o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU publicou relatório afirmando que as detenções de uigures e outras minorias podem construir crimes contra a humanidade.

O material veio poucos meses após a divulgação de milhares de documentos vazados de distritos policiais de Xinjiang que documentam a presença de uigures nos campos de reeducação, onde Pequim alega empreender um programa de desradicalização visando a extremistas.

As imagens do material mostram a discriminação religiosa contra muçulmanos. Algumas registram, por exemplo, itens apreendidos pela polícia por serem considerados ilegais: tapetes de oração, hijabs -véu islâmico- e versos manuscritos do Alcorão.

"Foi um passo importante, claro, mas não suficiente", diz Dolkun sobre o posicionamento das Nações Unidas. "Tudo caminha a passos lentos."

O dilema para os ativistas uigures está na espécie de "beco sem saída" no palco internacional para elevar a pressão contra Xi Jinping.

A China, afinal, não é signatária do Estatuto de Roma, o que aumenta os obstáculos para que acusações contra o país cheguem ao Tribunal Penal Internacional. Por outro lado, é uma das diplomacias de maior peso na ONU, com poder de veto no Conselho de Segurança e, assim, capital político (e econômico) para pressão contra outros Estados.

Enquanto isso, pessoas como Dolkun tentam aumentar a pressão da sociedade civil. Ex-estudante de física na Universidade de Xinjiang, ele foi expulso da instituição por Pequim e forçado a deixar o país.

Também descobriu que havia sido colocado na lista da Interpol pelos atos que organizou na juventude, episódio que narra no livro "The China Freedom Trap" (a armadilha da liberdade na China), lançado em agosto.

Vivendo em Munique ao lado da esposa e dos filhos, ele há anos não tem contato com o resto da família. "Meus dois irmãos e minha irmã mais velha seguem em minha terra natal. Desde 2017, perdi contato. E soube, por um amigo, que minha mãe morreu em um campo de reeducação em 2018."

Segundo a Radio Free Asia, financiada por Washington, os dois irmãos de Dolkun estão detidos, um deles com pena de prisão perpétua.

Em 2020, veículos como o Global Times divulgaram um vídeo com a irmã de Dolkun e outros familiares o acusando de mentir sobre Xinjiang. Na gravação, diziam que sua mãe e seu pai morreram por questões ligadas à idade, não nos campos de reeducação.

Sem conseguir falar com os familiares, Dolkun lamenta. E também dá a entender que os parentes podem ter sido forçados a gravar o material. "O governo chinês usa os uigures como uma espécie de laboratório de teste para implementar táticas de vigilância tecnológica e assimilação cultural. Xinjiang é uma área de testes."

Pequim diz que há cerca de 12 milhões de uigures. Para grupos como o Congresso Mundial Uigur, são mais de 20 milhões em Xinjiang e na diáspora, concentrada em países como Turquia e Alemanha.


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