SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Na noite de 4 de junho, quando as tropas ucranianas já haviam aberto sua aguardada contraofensiva, um espetáculo recorrente no Canal 1 da TV estatal russa se anunciava: uma das propagandistas mais notórias do Kremlin seria ouvida no programa de um dos maiores apoiadores de Vladimir Putin, o apresentador Vladimir Soloviev.

Em vez de mantras militaristas, contudo, o que Margarita Simonian disse chocou boa parte dos espectadores: a Ucrânia agora tinha meios para atacar a Rússia, a guerra pode escalar e seria melhor para todos congelar o conflito agora, desmilitarizar a frente de batalha e fazer novos referendos para definir o destino das áreas ocupadas por Moscou.

Editora-chefe da rede de TV estatal RT, Simonian elogiou o plano de paz apresentado na véspera pela Indonésia, em linhas gerais resumido em sua fala --exceto na avaliação de riscos para os russos. "As Forças Armadas da Ucrânia receberão mísseis de longo alcance e caças. Eles vão infligir golpes em nós, em nossos territórios", afirmou.

"Vamos ter de responder", sugerindo ataques até à fábrica em que caças F-16 que cheguem à Ucrânia foram produzidos, um exagero retórico dado que ela fica nos EUA. Mas foi sua referência a "territórios disputados" para falar das quatro regiões que Putin anexou ilegalmente em setembro, mesmo sem controle total, que gerou indignação nos militaristas.

"Há um caldeirão no inferno para traidores da pátria. Ele está esperando vocês, queridos pacifistas", reagiu o canal nacionalista Czarismo Ordinário, no Telegram, citado pelo site independente Meduza, proscrito na Rússia. "Ela mudou de chefe? Chamar território de disputado é o sonho dos estrategistas do Ocidente, pois é o caminho para o colapso da Rússia. Se a Crimeia se tornar controversa, talvez o Cáucaso, Kaliningrado", questionou o blogueiro militar Roman Alekhin.

Simonian já fizera críticas pontuais a aspectos da guerra, como na mobilização de reservistas do ano passado, mas nunca algo tão amplo.

A questão fulcral, que de fato intrigou observadores da política russa, é o que estava por trás da fala relativamente pacifista de Simonian --que deixou claro ao seu anfitrião que não acreditava que seu desejo fosse viável porque Kiev não querer parar a guerra sem antes reconquistar os 20% de território que perdeu, inclusive a Crimeia anexada há nove anos.

Grosso modo, eles se dividem em dois grupos. O primeiro, formado por céticos como o professor Sam Green (King's College, Londres), acredita que Simonian tem o objetivos de dissimular as intenções que o Ocidente atribui ao Kremlin, já que ninguém sabe o que Putin realmente pensa.

Além disso, como argumentou o acadêmico no Twitter, a jornalista presta contas ao público interno cansado da guerra e ainda, a partir de reações, tenta auscultar o que pesquisas não captam. "De fato, é difícil argumentar com a lógica dela, e estou certo de que ela reflete a visão de alguns no establishment russo, talvez muitos ou a maioria. Mas será um erro, contudo, assumir que reflete a posição do Kremlin", escreveu.

Discorda dele uma muito bem informada analista russa, Tatiana Stanovaia, do canal do Twitter R.Politik. Segundo ela, é exatamente a posição do Kremlin que está na fala. "A proposta de Simonian reflete a recessidade aguda do Kremlin de congelar tudo como está. Todo mundo no Kremlin entende o risco da contraofensiva ucraniana. É uma tentativa de jogar o jogo das pombas [advogados da paz] enquanto o inimigo prepara um ataque", escreveu.

Ela faz um reparo, contudo, dizendo que a ideia de novos referendos é jogo de cena puro, já que o resultado seria o mesmo do ano passado em áreas ocupadas: a mudança para a Rússia, já que os ouvidos estavam metaforicamente com armas na cabeça.

A reportagem questionou um membro da elite russa sobre a polêmica. Ele, executivo de uma grande estatal que não pode ser identificado, afirma que algum tipo de congelamento seria desejável, mas não acredita que Simonian falava em nome de Putin. Ele crê, contudo, que ela foi orientada pelo Kremlin a sondar a hipótese pacifista a partir da repercussão do discurso.

O debate ocorreu sob o impacto dos recentes ataques com drones a Moscou e bombardeios ao sul russo, mas antecedeu o grande fato da semana, a explosão da represa de Nova Kakhovka. Tanto Kiev quanto Moscou atribuem ao inimigo a ação, que embaralhou as cartas militares no sul ocupado da Ucrânia com a enorme disrupção causada pela tragédia.

Seja como for, a discussão mostra que há peças se mexendo no opaco tabuleiro russo da guerra. Na superfície, o apoio ao Kremlin no conflito segue alto.

O mais recente levantamento do centro independente Levada, divulgado no dia 1º mostra estabilidade francamente favorável a Putin: 43% concordam totalmente com as ações na Ucrânia, 33% concordam majoritariamente, enquanto 10% têm dúvidas e 8%, reprovam.

Feita de 25 a 31 de maio com 1.603 pessoas e margem de erro de dois pontos para mais ou menos, a pesquisa indica ainda um crescimento no ímpeto militarista, atribuído pelo Levada à tomada da estratégica Bakhmut, em Donetsk, pelos russos.

Segundo o instituto, de abril para maio cresceu de 38% para 48% o índice de pessoas que acreditam que a Rússia tem de insistir na via militar para encerrar o conflito. Já aqueles que desejavam negociações de paz caíram de 51% para 45%, indicando a divisão da sociedade nesse quesito.

O apoio ao presidente russo também segue estável e alto: 82% dizem aprovar seu trabalho. O Levada é considerado insuspeito, por ser classificado como "agente estrangeiro" por seu financiamento externo.


Entre na comunidade de notícias clicando aqui no Portal Acessa.com e saiba de tudo que acontece na Cidade, Região, Brasil e Mundo!