SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - As dificuldades da Ucrânia na sua aguardada contraofensiva nos territórios ocupados pela Rússia têm levado autoridades de países ocidentais aliados a Kiev a adotar moderação no discurso acerca das chances de sucesso da ação.
A cautela dá o tom, por exemplo, ao encontro dos chefes de Defesa dos 31 países da Otan, a aliança militar liderada pelos Estados Unidos. "A guerra é uma maratona, não uma corrida de velocidade", afirmou o americano Lloyd Austin antes da reunião, nesta quinta (15) em Bruxelas.
Na véspera, o secretário-geral da Otan, o norueguês Jens Stoltenberg, fora ainda mais seco. "Nós não sabemos se isso [a contraofensiva] será o ponto de virada da guerra. Quanto mais ganhos a Ucrânia tiver, mais forte será sua posição na mesa de negociação", afirmou.
A frase é uma heresia para o círculo do presidente Volodimir Zelenski, que trabalha com a visão de que não pode haver negociações que impliquem perda territorial para o seu país ?que hoje tem cerca de 20% de seu território em mãos russas. Ele voltou a pedir comprometimento ocidental em uma fala ao Parlamento suíço, nesta quinta.
Por evidente, expectativas baixas dão retornos maiores em caso de sucesso. A contraofensiva ucraniana teve seus movimentos iniciais no domingo retrasado (4), mas por ora analistas são unânimes em avaliar que ela não passou da fase de ataques para testar pontos mais fracos nas defesas russas, estabelecidas ao longo de 1.000 km de frente no leste e sul do país.
"A Ucrânia está fazendo progresso contínuo. Essa é uma luta muito difícil, muito violenta, e deverá levar um tempo considerável de tempo a um alto custo", disse, ao lado de Lloyd, o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA.
"Nós estamos com a Ucrânia para o longo prazo", disse o secretário Lloyd. Os EUA por ora provam sua posição, tendo anunciado um pacote de R$ 1,5 bilhão de nova ajuda na terça (13), para começar a repor os blindados perdidos pela Ucrânia nas tentativas de furar as linhas russas.
O jornal alemão Handesblatt também publicou nesta quinta uma reportagem dizendo que Berlim está coordenando o envio de mais 14 tanques Leopard-2 para Kiev.
Um episódio chamou a atenção em especial, na quinta passada (8) em Mala Tokmatchka (Zaporíjia, sul ucraniano). Ali, ficou evidente o desafio para Kiev quando um grupo de cerca de 20 blindados tentou romper um ponto bem defendido com minas e obstáculos no solo.
O resultado foi que um dos blindados de limpeza de explosivos acabou destruído ao atravessar o campo minado, chamando a atenção da artilharia russa, apoiada por drones de reconhecimento. O que se viu foi um pequeno massacre, com o agravante propagandístico de que foram perdidos ali Leopard-2 e blindados de infantaria americanos Bradley, estrelas do pacote de ajuda ocidental para a contraofensiva.
Isso não significa, claro, que Kiev não poderá ter sucesso em outros pontos e talvez até lograr seu objetivo presumido de cortar as linhas entre a Rússia e o Donbass (leste) ocupado e a Crimeia, península do sul do país anexada por Vladimir Putin em 2014.
Mas a intensidade dos combates segue alta, talvez o único ponto em comum nos relatos de lado a lado. "Há um avanço gradual, mas contínuo, das nossas forças. Ao mesmo tempo, o inimigo está oferecendo uma resistência potente", afirmou nesta quinta a ministra-adjunta da Defesa da Ucrânia, Hanna Maliar.
O Ministério da Defesa russo, por sua vez, manteve o tom linear de que está repelindo todos os ataques até aqui. Apesar da propaganda e dos exageros prováveis em números de equipamentos ucranianos destruídos, até aqui de fato Kiev não conseguiu mais do que ganhos incrementais.
No noticiário ocidental, o tom triunfalista a cada vilarejo em que a bandeira ucraniana foi recolocada deu lugar a reportagens falando acerca de dificuldades em campo. Por outro lado, o próprio Putin admitiu perdas russas significativas, ainda que menores que a dos rivais, o que também sugere cautela.
O analista sênior de guerra terrestre do RUSI (Royal United Services Institute, de Londres), o mais antigo centro de estudos estratégicos do mundo e que tem publicado avaliações mais sóbrias do que a média ocidental sobre o conflito, descreveu o cenário em um artigo publicado nesta quarta (13). "Para os parceiros internacionais da Ucrânia, o verão [do Hemisfério Norte] provavelmente será profundamente desconfortável. As perdas irão crescer e sucesso levará tempo", escreveu Jack Watling.
Para ele, a esta altura é impossível fazer uma análise objetiva sobre o rumo da contraofensiva. O analista vê o poder aéreo russo como grande fator a dificultar um eventual avanço ucraniano, mesmo que uma brecha seja encontrada nas defesas. "Em algum momento, os ucranianos vão ter de decidir onde empregar suas principais unidades de assalto, e aí a ofensiva entrará em sua fase decisiva", afirmou.
Para o analista militar Ivan Barabanov, de Moscou, o único fator que Kiev pode explorar é uma eventual quebra na moral russa. "Tivemos muitos meses para nos reforçar. Não vejo um cenário como o de Kharkiv", disse, por mensagem de texto, em referência à tomada surpresa de áreas ocupadas por Moscou na região norte ucraniana, em novembro.
Na questão da moral, um incidente relatado por blogueiros militares russos nesta quinta pode ter seu peso: cerca de cem soldados morreram, segundo a versão, atingidos por míssil ucraniano enquanto esperavam por horas seu comandante para um discurso motivacional em Kreminna (Lugansk, leste).
USINA NUCLEAR É INSPECIONADA
Ainda nesta quinta, no sul ocupado da Ucrânia, uma delegação da Agência Internacional de Energia Atômica chefiada pelo seu diretor, o argentino Rafael Grossi, chegou à usina nuclear de Zaporíjia, a maior da Europa. Ele disse que medidas foram tomadas para que a instabilidade no reservatório que abastece a piscina cuja água resfria os reatores locais não provoque um acidente.
O reservatório perdeu seu nível devido ao rompimento da barragem que o mantinha, na semana passada, numa explosão que Moscou e Kiev se acusam mutuamente de ter provocado para auferir ganhos militares ao sul, nos 100 km entre o local do incidente e a foz do rio Dnieper ?alagando as margens ucraniana e russa ocupada.
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