SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Na primeira visita de um chanceler do Canadá ao Brasil em quase dez anos, a ministra Mélanie Joly tratou de um tema que virou uma das prioridades da política externa de seu país: o combate à desinformação.
A chefe da diplomacia do país norte-americano se reuniu em Brasília com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no último dia 28 e discutiu pontos tradicionais da parceria bilateral, como defesa do ambiente, crescimento inclusivo e direitos humanos. Joly, por outro lado, também conversou com o chanceler Mauro Vieira e com a presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, sobre regulação da internet.
O Canadá aprovou há pouco uma lei que prevê o pagamento, pelas big tech, de conteúdo jornalístico e debate uma regra para coibir violência online. "A democracia precisa ser um mercado de ideias baseadas em fatos", disse a ministra à Folha. "Precisamos garantir que as democracias se aliem e mandem uma mensagem para o mundo e para as big tech sobre a importância de proteger os ecossistemas de mídia."
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P. - Qual foi o objetivo de sua visita ao Brasil e o que conversou com o presidente Lula?
MJ - Brasil e Canadá têm uma forte parceria, mas o relacionamento pode se tornar ainda mais próximo porque temos muito em comum. Temos governos progressistas que acreditam na importância do crescimento inclusivo, no combate às mudanças climáticas, na defesa do ambiente e em processos de reconciliação com os povos indígenas. Esta é a primeira visita de um ministro das Relações Exteriores do Canadá ao Brasil em dez anos, e é um projeto pessoal lançar uma nova fase de elos bilaterais fortalecidos. Queremos investir cada vez mais no Brasil, já temos grandes investimentos em infraestrutura e energia limpa, e nosso desejo é dar um novo impulso à negociação de um acordo de livre comércio com o Mercosul. Também falei com Mauro Vieira sobre a necessidade de desenvolvimento e diálogo político no Haiti.
P. - O Canadá irá colaborar com o Fundo Amazônia?
MJ - É algo que estamos discutindo. Canadá e Brasil têm algumas das maiores florestas do mundo. Temos enfrentado muitos desafios devido aos incêndios florestais, então precisamos melhorar nossa cooperação em proteção às florestas em geral. Já nos comprometemos, na conferência da ONU de biodiversidade no ano passado, com a conservação de 30% da biodiversidade do planeta até 2030, incluindo na Amazônia, e anunciamos US$ 350 milhões para isso. Mas podemos fazer mais.
P. - O Canadá impôs sanções contra cidadãos e veículos de mídia russos acusados de disseminar desinformação sobre a Guerra da Ucrânia. Esse instrumento é adequado para combater a desinformação?
MJ - Há muitos fronts na guerra, e um deles definitivamente é o digital. Nesse sentido, sanções são um bom instrumento para punir quem promove a desinformação patrocinada pela Rússia. Mas também temos uma abordagem mais ampla da desinformação, porque a democracia precisa ser um mercado de ideias baseadas em fatos. Estamos trabalhando com a Holanda em uma declaração sobre desinformação patrocinada por estados. Precisamos garantir que as democracias se aliem e mandem uma mensagem para o mundo e para as big tech sobre a importância de proteger nossos ecossistemas de mídia.
P. - O Brasil e outros países têm acompanhado a legislação que acaba de ser aprovada no Canadá para remuneração de conteúdo jornalístico pelas big tech, semelhante à lei em vigor na Austrália desde 2021. Como o Brasil e o Canadá podem cooperar nessa área?
MJ - Temos três leis. A primeira estabelece que as plataformas digitais que oferecem conteúdo cultural precisam contribuir para o financiamento da criação de conteúdo canadense. Isso se aplica mais ao setor de audiovisual e streaming. Além disso, temos uma lei que acaba de ser aprovada, à qual você se refere, que garante igualdade de condições entre as big tech e a mídia. As big tech precisam participar no financiamento e na viabilidade da mídia. E temos uma lei, a ser introduzida, que é a de Danos Online. Aquilo que nunca seria tolerado no mundo físico não pode ser tolerado no mundo online.
P. - A senhora discutiu no Brasil regulação de internet. Há chance de cooperação nessa área?
MJ - Conversei com a ministra Rosa Weber [STF] e com o chanceler Mauro Vieira. O tema é parte importante da nossa política externa, mencionei diversas vezes no G7, que fez declaração abordando a desinformação.
P. - Veículos estatais russos, como a RT e a Sputnik, têm muita força em países do Sul Global [termo que, em geral, designa países emergentes, como Brasil, Índia e Indonésia, com agendas que buscam independência de grandes potências, como China e EUA, mas que não concordam necessariamente entre si]. Como a senhora vê a disseminação de propaganda russa em regiões como a América Latina?
MJ - Banimos a RT por meio do órgão regulatório do Canadá, que é independente do governo. Todas as guerras têm como componente a propaganda ?e é importante limitar o alcance dessa desinformação. Existe uma estratégia clara da Rússia de tentar disseminar falsas narrativas em países do sul. Mas, no final das contas, a Rússia invadiu a Ucrânia, ponto final. Violaram a Carta da ONU e os princípios de soberania e integridade territorial, algo condenado em resolução da ONU por Brasil, Canadá e mais de 140 países.
P. - O Brasil apoiou a resolução da ONU que condenou a invasão da Ucrânia, mas se negou a enviar munições para os ucranianos e não impõe sanções que não sejam multilaterais. Como o Canadá vê essa posição?
MJ - É a posição do Brasil, e não vou comentar. Brasil e Canadá concordam que houve uma invasão russa da Ucrânia contrária aos princípios centrais da legislação internacional. Brasil e Canadá sempre apoiaram o multilateralismo e trabalharam dentro do sistema internacional, que pode não ser perfeito, mas nos manteve em relativa paz desde a Segunda Guerra Mundial. Sabemos que, no final, haverá negociação [entre Rússia e Ucrânia], porque é dessa maneira que todas as guerras acabam. Mas o papel do Canadá é fortalecer a posição da Ucrânia na mesa de negociação, e isso só vai acontecer quando os ucranianos se fortalecerem na frente de batalha. Por isso estamos fornecendo ajuda financeira, militar e humanitária à Ucrânia. O Canadá é um dos países com maior nível de ajuda à Ucrânia per capita.
P. - Lula propõe que países supostamente não alinhados, como China, Índia e Brasil, façam a mediação entre Rússia e Ucrânia, que deveria começar sem pré-condições. Como a senhora vê essa ideia?
MJ - É importante ter o maior número possível de países negociando e discutindo, por exemplo, desarmamento nuclear. Mas nossa posição é clara: os ucranianos estão lutando pela liberdade deles e pela nossa. Conversei sobre Rússia e Ucrânia com minha contraparte [o chanceler Mauro Vieira] e seguirei falando com ele sobre isso. Precisamos abordar a maior ameaça à segurança internacional atualmente.
RAIO-X | MÉLANIE JOLY, 45
Chanceler do Canadá desde outubro de 2021, foi eleita deputada pelo Partido Liberal. Já foi ministra do Desenvolvimento, Turismo e da Herança Canadense (equivalente à Cultura). Formada em direito pela Universidade de Montreal, tem magister juris em direito comparado pela Universidade de Oxford.
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