WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - Primeira mulher a comandar a Embaixada do Brasil em Washington, um dos postos de maior prestígio da carreira diplomática, Maria Luiza Viotti reconhece que "Brasil e Estados Unidos não vão sempre concordar em tudo", mas diz que há grande convergência em relação a valores de democracia e direitos humanos.
Viotti, 69, apresentou suas credenciais ao presidente americano, Joe Biden, na última sexta-feira (30), quando, segundo ela, o democrata se disse empenhado em trabalhar com Lula na agenda climática.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, a diplomata afirma que "é natural" que haja frustração com as posições divergentes do Brasil, como em temas referentes à Guerra da Ucrânia e à China, mas afirma que o país tem "posição de neutralidade" na atual ordem global.
PERGUNTA - O governo Biden fez manifestações de confiança na democracia no Brasil e disse que não aceitaria nenhum tipo de interrupção democrática. O ex-presidente Jair Bolsonaro falou em interferência na eleição. Como a sra. viu a atuação dos EUA durante as eleições?
MARIA LUIZA VIOTTI - Os episódios que aconteceram no Brasil [a invasão das sedes dos Três Poderes] guardam certa semelhança com o que houve aqui nos EUA [ataque ao Capitólio]. Há uma aproximação entre os dois países em relação à preocupação com o fortalecimento da democracia e das instituições. Isso foi parte das conversas durante a visita do presidente Lula, e a tarefa de cooperar para o fortalecimento das instituições e o combate à desinformação continuará a fazer parte da nossa agenda.
P. - Mas acredita que os EUA desempenharam um papel importante?
MV - O papel mais importante foi desempenhado pelas instituições brasileiras ao afastar qualquer ameaça à democracia. É claro que as manifestações norte-americanas foram também bem-vindas.
P. - Houve em Washington frustração com manifestações do presidente Lula que destoam das posições dos EUA, principalmente em relação à Guerra da Ucrânia e à China. Depois do que fizeram para manifestar confiança nas eleições brasileiras, afirmaram que o presidente Lula foi injusto. Acredita que o Brasil ficou devendo alguma coisa para os EUA?
MV - Brasil e EUA não vão sempre concordar em tudo. Há uma convergência grande de valores em relação ao fortalecimento da democracia e dos direitos humanos. Vamos celebrar no ano que vem o bicentenário das relações, não há dúvida da relação de amizade e confiança. Isso ficou muito bem demonstrado na visita do presidente Lula.
Agora, há divergências em certas questões como na Guerra da Ucrânia. O Brasil condenou a invasão russa, como não poderia deixar de ser. Mas, ao mesmo tempo, fizemos um apelo à paz. E o presidente Lula tem insistido muito nessa ideia de negociações. Nós, brasileiros, confiamos muito no diálogo, na solução pacífica dos conflitos.
Isso causou, de fato, alguma insatisfação aqui, porque neste momento os EUA estão muito envolvidos no apoio à Ucrânia. O que é importante é que haja sempre um diálogo entre Brasil e EUA para que possam ser esclarecidas as razões de cada lado sobre as suas posições.
P. - Mas os americanos avaliam que o Brasil não é tão neutro quanto diz ser, pendendo mais para a Rússia e para a China.
MV - Num contexto de fortes tensões, é natural que um dos parceiros espere do outro uma absoluta coincidência. Mas o Brasil de fato tem tomado uma posição de neutralidade, buscado equilíbrio. Celso Amorim visitou a Ucrânia, há contatos entre os dois países, procuramos conversar com todas as partes. Também não é só com China e Rússia, conversamos com os países europeus, com os nossos vizinhos latino-americanos.
P. - No ano que vem haverá eleição presidencial nos EUA. Como podem ser as relações se Donald Trump voltar ao poder?
MV - O Brasil terá sempre relações de Estado a Estado com os EUA, qualquer que seja a orientação do presidente. Vamos esperar e observar o processo eleitoral aqui. Vai ser realmente um ano muito interessante.
P. - O Ministério da Justiça procurou o governo americano pedindo a extradição do blogueiro Allan dos Santos, o que ainda não ocorreu. Como estão esses trâmites?
MV - É um processo que corre na Justiça. O papel do Itamaraty é só um canal de comunicação, de transmitir as informações que nos chegam pelo Ministério da Justiça. É um trâmite independente.
P. - Os EUA prometeram colocar US$ 500 milhões no Fundo Amazônia, mas essa proposta não andou no Congresso até agora. Acredita que esse investimento pode não sair?
MV - Quero acreditar que vai sair. Sei que o governo americano está muito empenhado. O presidente Biden disse que quer trabalhar com o presidente Lula na agenda de mudança do clima e de contenção do desmatamento. É uma responsabilidade que ele, pessoalmente, está muito empenhado e quer mobilizar os demais países do G7.
P. - Alguns estados têm apertado o cerco contra a imigração ilegal. A sra. pretende mobilizar ajuda consular para essas brasileiros em situação irregular?
MV - Os consulados têm os canais e mecanismos necessários para apoiar brasileiros nessas circunstâncias. Será prestado todo o apoio necessário para isso.
P. - Há diálogo com os governadores que estão tomando esse tipo de medida, como Ron DeSantis, na Flórida?
MV - Os consulados mantêm contatos rotineiros também com as autoridades locais dos governos onde atuam.
P. - O Brasil vai voltar a exigir visto de americanos em breve, o que gerou reclamações. O país pretende manter essa posição?
MV - A política migratória brasileira é baseada na reciprocidade. Houve um movimento unilateral nosso alguns anos atrás com a expectativa de que houvesse um aumento do turismo e talvez reciprocidade do outro lado, e esses dois elementos não aconteceram ou não são muito visíveis. De forma que o Brasil resolveu restaurar os vistos. Vamos fazer isso de forma eletrônica, o que agiliza muito a concessão do visto e diminui a necessidade de visitas aos consulados.
P. - O governo brasileiro tinha em relação ao governo americano a demanda de retirar as tarifas de importação de aço impostas por Trump. Como está isso?
MV - É um trabalho de convencimento de que o aço brasileiro não compete com o aço americano, porque os nossos produtos são semimanufaturados e entram numa cadeia de produção. É algo que contribui para a produção de aço nos EUA. Continuaremos insistindo.
Em relação ao Haiti, os EUA estão propondo uma força multinacional que não passe pela ONU. O Brasil tem dito que não quer liderar nenhuma missão nova para o Haiti.
Estamos realmente muito sensibilizados com a situação do Haiti, queremos continuar a fazer a nossa parte para contribuir para uma solução, e achamos que no momento a melhor forma de o Brasil contribuir para isso é com cooperação técnica, na área de saúde e treinamento de policiais.
Isso não inclui enviar tropas ao Haiti.
No momento, não.
P. - A sra. foi chefe de gabinete por muitos anos do secretário-geral António Guterres. Sua presença aqui dá mais espaço para demandas do Brasil na ONU?
MV - Tenho uma grande amizade, respeito e admiração por ele. Teremos agora um novo embaixador do Brasil junto à ONU. Ele será o canal de comunicação com o secretário-geral. O Brasil sempre terá uma posição boa em relação à ONU, quem quer que seja o secretário-geral.
P. - Ajuda no pleito pela reforma do Conselho de Segurança?
MV - Isso não passa pelo secretário-geral, mas por países-membros. Os EUA estão demonstrando um novo interesse nas negociações sobre reforma do órgão. Existe um grupo de trabalho da Assembleia-Geral que se reúne há quase duas décadas e essas negociações não têm avançado, mas continuam a ocorrer. Os processos na ONU são muito longos. Esse é um tema extremamente complexo e sensível. Os americanos nunca foram muito ativos nessas reuniões, e agora estão mostrando interesse em ser mais ativos. É algo interessante.
Raio-X | Maria Luiza Viotti, 69
Primeira mulher a comandar a Embaixada do Brasil em Washington, entrou na carreira diplomática em 1976. Também foi a primeira embaixadora da missão brasileira junto à ONU, entre 2007 e 2013, e na Alemanha, até 2016. De 2017 a 2022, foi chefe de gabinete do secretário-geral da ONU, António Guterres.
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