CIDADE DO PANAMÁ, PANAMÁ (FOLHAPRESS) - Um ano após o fim do direito constitucional ao aborto nos EUA, os movimentos que buscam assegurar às mulheres o acesso a esse procedimento se voltam para a América Latina em busca de exemplos de como resistir a uma onda contra os direitos reprodutivos.
"As condições sob as quais ativistas latino-americanos têm trabalhado são terríveis há décadas, e eles criaram redes de acesso ao aborto", diz Elizabeth Estrada, ativista e coordenadora de advocacy no escritório de Nova York do National Latina Institute for Reproductive Rights.
Estrada falou com a Folha de S.Paulo durante a 7ª conferência regional do Consórcio Latino-americano Contra o Aborto Inseguro (Clacai), realizada na Cidade do Panamá, em junho passado.
Segundo levantamento do jornal The New York Times, o aborto é hoje proibido em 14 estados americanos. Outros oito tentaram instituir regras restritivas que foram bloqueadas pela Justiça.
Para Estrada, ativistas de movimentos pelo direito ao aborto devem focar batalhas estaduais. Apesar de iniciativas no Congresso para reinstituir o direito em todo o país, ela diz que a estratégia deve ser local. Ela cobra postura mais enfática do presidente americano, Joe Biden, e afirma que líderes como ele e o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deveriam tratar o tema como "uma questão de direitos humanos".
PERGUNTA - A reversão de Roe vs. Wade completou um ano. Qual o balanço?
ELIZABETH ESTRADA - Roe vs. Wade era o mínimo, um direito básico à privacidade em relação às decisões médicas. Mas, mesmo assim, isso não se traduzia em acesso ao aborto para muitas pessoas -pessoas que não falam inglês, pessoas pobres, imigrantes sem documentos. Ou seja: embora a derrubada de decisão tenha piorado a situação, já existiam barreiras antes.
P. - Como está a situação nos estados em que o aborto foi proibido?
EE - Existem 14 estados que proibiram completamente o aborto nos EUA. Há 26 que estão perto de proibí-lo, e 40% das pessoas que vivem nesses estados são latinas, e mulheres negras e indígenas.
Embora tenha havido grande fluxo de pessoas comuns ajudando essas mulheres a conseguirem viajar para fazer o procedimento [em um estado onde ele seja legalizado], não estamos tendo em muitos estados o apoio do governo.
P. - Como a decisão tem impactado os provedores do procedimento?
EE - Há duas coisas para observar: o aumento na violência contra profissionais e clínicas e o aumento de pacientes chegando a estados como Nova York. Isso está afetando um sistema médico já sobrecarregado.
Foi aprovada a "Lei de Escudo" em Nova York, que protege médicos que façam abortos por telemedicina em estados onde isso é banido, de modo que eles não sofram processos judiciais.
Essa é uma forma de proporcionar segurança para as pessoas que estão nesses lugares e para os médicos -o que é crucial, porque estamos vendo uma diminuição no número de profissionais que realizam o procedimento devido ao medo da criminalização.
P. - Qual a posição da sociedade em relação à regra atual?
EE - O aborto é popular nos EUA. Vemos isso em lugares como o Kansas, onde o eleitorado votou contra a mudança da Constituição estadual para limitar o aborto. As pessoas são contra a queda de Roe vs. Wade, e é muito importante lembrarmos disso, porque é fácil ficar derrotista vendo as notícias e o que está acontecendo politicamente. A Suprema Corte foi contra a vontade do povo com essa decisão.
P. - Existe alguma perspectiva de reestabelecer o direito ao aborto nacionalmente?
EE - Existem iniciativas por parte de uma coalizão nacional, como o projeto de lei Abortion Justice Act (Lei de Justiça para Aborto) apresentado pela deputada Ayanna Pressley [democrata de Massachusetts], que criaria regras em torno da legislação antiaborto.
Mas o lugar onde podemos ser mais impactantes é nos estados e municípios. Vemos que Biden nem mesmo diz a palavra "aborto". Embora exista um movimento nacional, devemos considerar os estados, porque essa sempre foi a estratégia dos conservadores: trazer a questão do aborto de volta ao estado, para que possam proibi-la.
No Brasil muitos movimentos de direitos reprodutivos também reclamam que esse assunto é um tabu mesmo em governos progressistas. Somos, especialmente na América Latina, uma comunidade religiosa e continuamos acreditando que devemos ter vergonha das coisas, seja sexo e prazer, direitos das mulheres ou aborto.
E temos predominantemente homens nas presidências. Muitas vezes eles não têm interesse nisso porque entendem como um "problema feminino". Mas esta é uma questão de direitos humanos. Se não temos acesso à total autonomia corporal, uma presidência como a de Lula deveria se preocupar, porque é progressista.
Usar essa linguagem dos direitos humanos, sair do "problema feminino", pode ajudar homens mais liberais ou progressistas como Lula e Biden a encararem a questão como um problema de todos.
P. - Por muito tempo os movimentos da América Latina olharam para os EUA como inspiração nos direitos reprodutivos. Agora esse caminho parece ter se invertido. O que a América Latina pode ensinar?
EE - Os EUA são um país individualista. As condições sob as quais as ativistas latino-americanas pelo aborto têm trabalhado são terríveis há décadas, e elas criaram redes [de acesso ao aborto] que muitas vezes são silenciosas. Não precisamos divulgar como estamos dando às pessoas o medicamento para aborto, mas temos toda essa rede forte de apoio uns aos outros.
A América Latina se organiza sob o pressuposto de que estamos todos aqui para apoiar uns aos outros. Somos tão fortes quanto nossas redes. É isso que os EUA precisam entender: que a América Latina chegou até onde chegou em direitos ao aborto por causa desses relacionamentos. Os EUA precisam parar de pensar em indivíduos e pensar em coletivos.
RAIO-X | ELIZABETH ESTRADA
Gerente de advocacy do escritório de Nova York do National Latina Institute for Reproductive Rights, onde também foi líder de engajamento com a sociedade civil. Mexicana, vive nos EUA desde a infância e começou a carreira como ativista no Feminist Women's Health Center em Atlanta, Geórgia.
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Ativista
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