SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Javier Milei fez jus ao seu passado de roqueiro no comício em que encerrou sua campanha às primárias na Argentina. Pouco antes de sua chegada, telões no palco exibiam prédios sendo demolidos e bombas explodindo. Quando ele apareceu, foi à plateia, saudando a multidão de apoiadores que o aguardava.
O público depois entoaria slogans contra o establishment político com o fervor dos maiores fãs musicais -algo apropriado para o cenário do evento, um espaço para shows com capacidade para 15 mil pessoas. "Que se vayan todos", "que todos vão embora", cantaram em coro.
A cena impressionou, sobretudo em eleições vistas como uma das mais incertas na Argentina nos últimos 20 anos. Mas para especialistas ouvidos pela Folha, ela não é suficiente para convencer que o economista e pré-candidato à Presidência retomou a força com que iniciou a corrida eleitoral no começo do ano.
"Ele queimou a largada", diz o analista político e consultor Sergio Berensztein. "Por algum tempo, foi encarado como alguém capaz de ameaçar o sistema bipartidário. Ele ainda tem chances de se sair bem nas eleições. Mas nada parecido com o perigo que alguns achavam que ele representava."
Milei, 52, está acostumado aos holofotes. Na juventude, além de encabeçar uma banda cover dos Rolling Stones, foi goleiro do time portenho Chacarita. Mais recentemente, ganhou fama como comentarista de economia na imprensa até que, em 2021, foi eleito deputado federal por Buenos Aires. Sua atuação na Câmara é mínima, e ele sorteia de tempos em tempos o salário que ganha como parlamentar.
Líder da coalizão A Liberdade Avança, o argentino se define como um "anarcocapitalista" e se apresenta como um candidato da terceira via, "diferente de tudo o que está aí". Suas principais bandeiras são, vide o canto entoado por seus apoiadores no comício na segunda-feira (7), a oposição à política tradicional, além de um neoliberalismo radical.
Berensztein diz que as propostas de Milei para a área econômica, que incluem substituir o peso argentino pelo dólar e fechar o Banco Central, colaboraram para a alavancar sua candidatura, já que ele foi um dos poucos presidenciáveis a abordar diretamente na campanha a inflação acima dos 100% e os índices de pobreza acima dos 40% que tanto afligem a população.
Mas, à medida que os demais partidos definiram suas chapas, Milei perdeu fôlego. O fracasso retumbante dos candidatos que ele apoiou nas eleições locais, no mês passado, não ajudou. E as acusações de venda de candidaturas que surgiram contra ele têm potencial de deslegitimar seus ataques ao sistema político convencional, completa Berensztein, ainda que não tenham tanta influência sobre o eleitorado.
Hoje, a aliança que o ultradireitista comanda tem entre 11% e 27% das intenções de voto nas primárias, a depender da pesquisa. Está atrás das coalizões Juntos por el Cambio, de direita, que registra entre 22% a 40% das preferências dos eleitores, e da União pela Pátria, peronista, com entre 19% a 34%, segundo dados agregados pelo portal La Política.
O pesquisador Federico Rossi, professor de sociologia da Universidade Nacional de Educação à Distância (Uned) em Madri, diz que a própria exposição que o pré-candidato ganhou com a campanha contribuiu para enfraquecê-lo.
Milei é um defensor radical do liberalismo, e já demonstrou apoio a medidas como a legalização da venda de órgãos e o fim das escolas públicas --sua proposta para o campo é que, em vez de oferecer educação gratuita, o Estado passe a dar "vouchers" às famílias de crianças e adolescentes com o equivalente ao valor que se gasta com cada estudante e eles decidam como usá-lo, semelhante ao que ocorre no Chile.
"Quanto mais suas palavras são ouvidas, mais elas assustam", diz Rossi, acrescentando que iniciativas como a extinção do sistema público de educação vão de encontro a valores caros aos argentinos.
"Milei é um candidato de ultradireita, mas seus eleitores não necessariamente o são. O que eles são é pessoas que se sentem excluídas, que clamam por ser ouvidas, representadas. Portanto, o discurso de raiva é o que gerou afinidade, mas à medida que fica claro o que um potencial governo Milei significaria, percebe-se que suas propostas ultrapassam o limite do razoável", completa ele.
Além disso, segundo o pesquisador, a ameaça representada pelo ultradireitista fez com que as legendas mais tradicionais a certa altura se movimentassem à direita, afastando do A Liberdade Avança tanto potenciais eleitores quanto doadores. "Todo o aparato partidário reagiu com alternativas que vão da centro-direita à direita", resume Rossi.
O professor cita tanto o peronismo, que acabou por escolher como pré-candidato oficial um nome da centro-direita, o ministro da Economia, Sergio Massa, quanto a oposição representada pela coalizão Juntos por el Cambio. A ex-ministra de Segurança Pública Patricia Bullrich, mais linha-dura, e o chefe de governo de Buenos Aires, Horacio Larreta, mais aberto ao diálogo, disputam a indicação da aliança.
Tanto Rossi quanto Berenztein discordam da alcunha de "Bolsonaro argentino" que Milei ganhou no Brasil -uma associação reforçada pela proximidade do político com um dos filhos do ex-presidente brasileiro, Eduardo Bolsonaro.
É certo que eles têm semelhanças, como a aposta no próprio carisma e o domínio das redes sociais. Mas Rossi argumenta que o título é muito mais apropriado a Bullrich, que compartilharia "a retórica, a estética e também o projeto de país" bolsonaristas.
Segundo o pesquisador, eles têm em comum com o que chama de outros líderes neofascistas globais, como Donald Trump nos Estados Unidos, o conservadorismo, o nacionalismo, e as tendências religiosas.
Milei não se encaixaria nesse perfil. "Ele é um liberal ultraortodoxo, algo que nunca existiu em termos eleitorais na história da Argentina e é muito raro a nível global, porque trata-se de uma visão tão extrema que nunca foi posta em prática. Ele propõe a dissolução do Estado como objetivo final."
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