SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Centenas de apoiadores do presidente eleito da Guatemala, Bernardo Arévalo, passaram a noite deste domingo (20) em festa na Praça da Constituição, no centro da capital. Munidos de bandeiras do país centro-americano, buzinas e instrumentos de percussão, eles comemoraram os resultados de um dos mais importantes pleitos nos últimos anos --o candidato "zebra" do primeiro turno derrotou a ex-primeira-dama Sandra Torres ao conquistar 58% dos votos no segundo.
A praça é uma espécie de termômetro da agitação social do país, e também serviu de palco para manifestações quando a Guatemala elegeu o seu primeiro presidente em eleições transparentes, na década de 1940: Juan José Arévalo, o pai de Bernardo.
Juan José governou entre 1945 a 1951, dando início à chamada "primavera democrática", uma década marcada por reformas sociais. O período foi interrompido por um golpe apoiado pelos Estados Unidos que derrubou Jacobo Arbenz Guzmán, presidente mais progressista que o país havia eleito até este domingo.
"A noite de ontem foi a mostra tangível do irreal", diz a estudante de comunicação Samantha Castro, 23. Ela foi comemorar a vitória de seu candidato na Praça do Obelisco, outro ponto da Cidade da Guatemala em que seus eleitores se reuniram. "O fato de as pessoas terem se organizado e saído com tanta alegria às ruas para celebrar um novo governo é algo que não acontece na Guatemala, pelo menos em sua história recente. Pelo contrário, são pessoas que estão esgotadas com política."
Analistas afirmam que a catarse acontece porque, pela primeira vez em anos, grande parte da população não votou no candidato que considerava "menos pior". Fundado em 2017, o Movimento Semilla, partido de Arévalo, teria o frescor que quase nenhuma outra sigla consegue sustentar após anos de desgastes com escândalos de corrupção que atingem a elite política guatemalteca.
O futuro presidente é um sociólogo de centro-esquerda nascido no Uruguai, um dos países em que seu pai se exilou após Guzmán ser deposto --nos anos seguintes, Arévalo viveria na Venezuela, no México e no Chile antes de voltar à Guatemala, aos 15 anos. Na década de 1980, ingressou na vida pública atuando como diplomata e, entre 1994 e 1995, foi o embaixador guatemalteco na Espanha.
Anos depois, em 2017, o político participou da fundação do Semilla. A criação da legenda é fruto da ebulição social de 2015, quando protestos massivos derrubaram o então presidente, Otto Pérez Molina, na época, alvo de investigações da Cicig (Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala), órgão independente apoiado pelas Nações Unidas para apurar casos de corrupção no país.
A comissão foi dissolvida em 2019. Ao longo de seus 13 anos de existência, revelou diversos escândalos envolvendo figurões da política local e ameaçou o que comumente é chamado de "pacto dos corruptos", acordos que sustentariam negócios ilícitos entre políticos, empresários, militares e narcotraficantes.
O fim do Cicig detonou uma onda de perseguições contra aqueles que participaram do projeto. Desde então, dezenas de promotores e juízes que trabalharam na comissão foram presos ou se exilaram, em um processo de degradação democrática.
A inesperada chegada de Arévalo ao segundo turno deu, assim, esperanças a uma parte da população que a princípio não acreditava na possibilidade de mudança. Nas pesquisas de intenção de voto de junho, ele era preferência de apenas cerca de 3% da população --o que acabou sendo providencial, já que políticos alternativos competitivos tiveram suas candidaturas suspensas em controversos processos judiciais.
Apenas dez dias após a realização do primeiro turno, por exemplo, um tribunal da Guatemala ordenou a suspensão do Semilla --ofensiva que, embora revertida no dia seguinte, aumentou a tensão sobre o pleito. Até o final da tarde desta segunda (21), a adversária de Arévalo, Sandra Torres, ainda não havia reconhecido os resultados da votação. Em vez disso, seu partido divulgou uma nota apontando supostas irregularidades das eleições sem apresentar provas.
A candidata derrotada ganhou popularidade entre 2008 e 2012, quando ocupou o posto de primeira-dama no mandato de seu então marido, Álvaro Colom, morto no início deste ano. Nessa posição, Torres controlou parte das políticas de assistência social do governo social-democrata e vislumbrou a possibilidade de ser a primeira mulher a presidir a Guatemala. Para isso, moveu-se pouco a pouco à direita e tornou o partido fundado por seu ex-marido, a UNE (Unidade Nacional da Esperança), praticamente irreconhecível.
Torres dobrou essa aposta nestas eleições. O candidato à Vice-Presidência de sua chapa era um pastor evangélico, e em comícios era comum ouvi-la declarar que um eventual governo seu protegeria as famílias "como Deus manda" e não legalizaria o aborto. Seus apoiadores aderiram à mensagem, e nesta segunda-feira circulavam na internet diversas mensagens associando a imagem de Arévalo a uma ameaça comunista e ecoando uma suposta fraude nas urnas.
As mesmas redes sociais representaram, porém, o trunfo de Arévalo entre os jovens, que o apelidaram de "Tio Bernie" --de acordo com uma pesquisa feita pelo jornal Prensa Libre em parceria com a consultora Prodatos divulgada em agosto, a vantagem do político em relação a Torres aumentava consideravelmente entre jovens de 18 a 30 anos.
Para o cientista político guatemalteco Manuel Meléndez-Sánchez, doutorando na Universidade Harvard, a estratégia do partido foi exitosa porque se voltou para o seu eleitorado mais fiel para chegar ao segundo turno --isto é, a população jovem e urbana-- e, na votação final, soube mobilizar a história de Arévalo para chegar aos rincões do país, onde Torres havia demonstrado mais força.
O político de esquerda teria sido ajudado, porém, por um erro de cálculo do sistema judiciário do país, que, segundo analistas, está cooptado por agentes antidemocráticos. "Nas últimas pesquisas antes do primeiro turno, apenas 35% dos guatemaltecos sabiam seu nome, e todos os dias promotores e tribunais davam a ele uma publicidade que teria custado ao partido milhões de dólares", afirma Meléndez-Sánchez.
Os próximos dias, porém, devem repetir a incerteza que marcou a campanha. "Estamos todos esperando que o Ministério Público, os tribunais e a UNE tentem anular a eleição", diz o pesquisador.
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