SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - É preciso denunciar "a instrumentalização da fé em função ideológica e política", diz o arcebispo metropolitano de São Paulo, cardeal dom Odilo Scherer, 73.
Ele conversou com a Folha de S.Paulo dois dias antes da data em que os católicos celebram o Dia de Nossa Senhora Aparecida, declarada em 1930 padroeira de um Brasil então quase todo católico. O presidente Jair Bolsonaro (PL) confirmou presença. O ex-presidente Lula (PT), não.
Nesta entrevista, dom Odilo fala sobre a ascensão evangélica no país e diz que "os candidatos arriscam levar rasteira por não darem atenção ao eleitorado católico".
Também diminui os riscos de abalos na democracia e critica o candidato à Presidência do PTB, Padre Kelmon. "Os padres que são padres se sentiram muito envergonhados por essa figura."
PERGUNTA - Nesta quarta (12), celebraremos mais um feriado de Aparecida em meio à eleição mais polarizada do Brasil recente. O sr. vê caminho para uma conciliação?
DOM ODILO SCHERER - Vamos nos ocupar de Aparecida. Vamos celebrar, como sempre celebramos aquela que para nós, católicos, é a mãe dos cristãos. Deveria ser também uma ocasião para unir, e não para dividir, para criar polêmica.
Como a Igreja poderia ajudar a apaziguar rachas?
D. O. S. - A questão da polarização vem de longe, não é de agora e não é só brasileira. Isso não ameniza as coisas, mas serve para compreender que estamos dentro de um esquema mais complicado. Parece que a cultura perdeu as referências e que, portanto, elegeu duas posições ideológicas como os absolutos. Em função delas, há um debate que às vezes chega às vias de fato, com violências que até levam à morte. Só espero que, passado este período eleitoral, quem for eleito tenha o bom senso de pacificar o país. A igreja contribui na medida em que continua a dizer que o debate de ideias não significa gerar inimigos.
Bolsonaro confirmou a visita dele no Santuário Nacional de Aparecida. Lula não, e ele já tinha dito, quando não foi ao Círio de Nazaré, que não queria instrumentalizar a religião. Acha que isso pode ocorrer?
D. O. S. - Nós estamos claramente denunciando a instrumentalização da fé em função ideológica e política.
Pessoalmente, cada um é livre. Se quiser ir, que vá. Vai como romeiro. Porém, seria muito ruim se o fato de ir fosse depois instrumentalizado politicamente. As pessoas no fundo compreendem, e evidentemente os eleitores saberão distinguir.
Em 2020, dom Walmor disse à Folha de S.Paulo que o momento de desgovernos exige o coro dos lúcidos. A lucidez apareceu nesta eleição?
D. O. S. - Onde há fanatismo, perdeu-se a lucidez. Onde há polarização extrema, perdeu-se a lucidez. Então estamos precisando justamente acalmar os ânimos e não entrar nesse jogo.
O sr. acha que o extremismo vem dos dois lados ou algum é mais forte?
D. O. S. - Dos dois lados.
Ano passado, dom Orlando Brandes, arcebispo de Aparecida, criticou a "pátria armada", no que foi entendido como crítica a Bolsonaro. O que o sr. achou desse episódio?
D. O. S. - Dom Orlando falou o que ele achava que tinha que falar naquele momento. Então é um direito dele.
Fala-se muito em eleitorado evangélico neste pleito. Por que não tanto no eleitorado católico?
D. O. S. - Os candidatos arriscam levar rasteira por não darem atenção ao eleitorado católico. Os evangélicos talvez não cheguem a 30% do eleitorado. Cuidado, porque quem não dá atenção ao outro eleitorado pode se enganar. Agora, o eleitorado católico em geral é tido como mais tranquilo. Talvez porque o eleitorado evangélico tem posição tomada.
E o que quer o eleitor católico?
D. O. S. - Ele é muito vasto e pluralista, não tem posição tomada a priori.
Por que a Igreja Católica, diferentemente das evangélicas, não explicita apoio a candidatos ou lança clérigos na eleição?
D. O. S. - O clero não deve participar de partido ou de campanha explícita. Esta é a norma católica, porque temos como princípio que devemos respeitar a pluralidade das opiniões dos católicos. Talvez não nos procurem porque sabem que não vamos puxar voto. Os católicos têm muitas posições, da extrema esquerda à extrema direita.
Bolsonaro tem evocado pautas caras a conservadores, como aborto e uma suposta ideologia de gênero. O sr. acha que esses temas devem ser discutidos na eleição?
D. O. S. - Não deve haver temas tabu. Não são questões religiosas, são questões de fundo ético-moral. Além do mais, essas não são posições evangélicas, são posições éticas que nós também compartilhamos. Muito antes dos evangélicos assumirem essa posição [antiaborto], sempre foi a posição católica.
Toda eleição o aborto volta à tona com mais força. Por quê?
D. O. S. - Os candidatos precisam se posicionar claramente, e eles sabem que, de acordo com sua posição, ou ganham ou perdem votos. O eleitor tem o direito de conhecer a posição deles. Evidentemente que há muitas outras questões que também deveriam ser colocadas e acabam ficando na sombra. As que dizem respeito à justiça social, por exemplo. A justiça econômica, a melhor equidade no acesso ao trabalho. Essas questões mal são discutidas. Dependeria da sabedoria dos candidatos trazer esses temas, e os eleitores certamente acompanhariam o debate se ele fosse elevado.
O papa Francisco já defendeu que escolas deem educação sexual "sem colonização ecológica", o que vai ao encontro da ideia de que a esquerda fabricou uma ideologia de gênero. Isso existe?
D. O. S. - Existe uma militância sem dúvida cultural para mudar os padrões em relação à sexualidade, o conceito de mudar referenciais antropológicos. Portanto, acho que sim, ela existe.
O sr. acha que a democracia sairá abalada deste pleito, independentemente de quem ganhar?
D. O. S. - Até aqui já tivemos uma porção de, digamos assim, oportunidades para isso acontecer. E não aconteceu. Acredito que não vai acontecer daqui para frente.
O que o sr. acha de influenciadores católicos como Bernardo Küstner, que ataca a CNBB e a chama de comunista?
D. O. S. - As redes sociais são uma novidade, e esses influenciadores também representam novas comunicações. Assumiram o espaço de maneira ágil. Mas precisa de um consenso crítico mais bem formado em relação a esses comunicadores. Eles naturalmente têm um grande alcance, mas muitas vezes o fazem às custas da verdade e sabe-se lá com que outros interesses.
O presidente sinaliza que poderá não aceitar o resultado das urnas se perder. A CNBB se posiciona quanto a essas ameaças?
D. O. S. - A CNBB já se posicionou. De toda maneira quem deve responder é a presidência da CNBB.
E o sr. pessoalmente?
D. O. S. - Claro que acho que não cabe o chefe do Executivo fazer esse tipo de ameaça, claramente à margem da Constituição. Tem que respeitar as regras do jogo.
Tivemos neste pleito um candidato visto como anedótico, que se apresentava como padre, ligado a uma igreja ortodoxa no Peru. O que o sr. achou do Padre Kelmon?
D. O. S. - É preciso sempre agir com verdade. No caso dessa figura, não há clareza. Não é padre católico [apostólico romano], não é padre das igrejas ortodoxas tradicionais. Por outro lado, é uma figura extremamente, como você diz, anedótica. Enfim, eu acredito que os padres que são padres se sentiram muito envergonhados por essa figura.
Até os anos 1980, Brasil tinha maioria de católicos, hoje eles são 5 em cada 10 brasileiros. O que aconteceu?
D. O. S. - Esse número, estamos pra ver [com o novo Censo]. De toda maneira, a Igreja Católica era a [religião] oficial do Brasil até 1890. A partir daí começaram a surgir os não católicos, isso tudo aí através de muitos movimentos evangelizadores dos pentecostais e neopentecostais. Houve grande atividade missionária da parte deles, com os métodos que não vamos discutir aqui.
Se no passado a Igreja Católica combatia, dos anos 1960 pra cá ela mudou de posição, porque respeita também a livre escolha de cada um. Não queremos guerra santa, não cabe isso. Continuamos a fazer nosso trabalho. Agora, não vamos forçar ninguém a aderir ou a ficar dentro da Igreja. Esperamos que com o tempo a verdade se manifeste, as pessoas abram os olhos e percebam o que deixaram de abraçar. O que importa é que a pessoa busque a verdade, sinceramente, e se acerte diante de Deus.
A gente também vê no Brasil um processo de secularização, de pessoas que não declaram nenhuma religião.
D. O. S. - Esse fator está crescendo mais do que os evangélicos. São os desigrejados, que, mesmo sem se dizer ateus, não aderem a nenhuma instituição religiosa.
Por que isso acontece?
D. O. S. - Estamos num mundo de perda de referências. É um momento cultural que claramente está favorecendo essa desvinculação também das igrejas e outras instituições. Se for ver, quantos querem ainda se agregar a um clube, a um sindicato? O que se tem que pensar é aonde isso está nos levando. Será que isso é bom? O tempo vai dizer.
Já vimos candidatos perderem por serem vistos como ateus ou pouco religiosos. É importante manifestar na eleição a crença em Deus?
D. O. S. - Acho importante que eles manifestem sua crença, mas acho também que da parte dos eleitores, o fato de um ser ateu ou católico não deve ser determinante. Deve ser determinante se ele é um cidadão honesto, se tem ficha limpa e propostas para o país todo, e não para um grupo religioso.
RAIO-X
Dom Odilo Scherer, 73
De Cerro Largo (RS), dom Odilo Pedro Scherer foi empossado arcebispo de São Paulo em 2007. Ordenado padre em 1976, foi o primeiro brasileiro nomeado pelo papa Bento 16 para o colégio de cardeais. Tem mestrado em filosofia e doutorado em teologia, ambos pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
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