SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Após quase quatro anos de um protagonismo paradoxal, os militares se preparam para o que um integrante da cúpula das Forças Armadas chama de "volta à normalidade" com a terceira eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a Presidência.

O primeiro teste ocorrerá de imediato: o que dirá o relatório chancelado pelas Forças Armadas sobre a auditoria feita em urnas eletrônicas no primeiro turno.

Como se sabe, Bolsonaro investiu todas as fichas na narrativa da fragilidade do sistema de votação, cooptando no processo o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Oliveira.

O fato de não terem divulgado sua conclusão acendeu alertas no comando petista. Segundo a Folha de S.Paulo ouviu de outros militares da cúpula da Defesa brasileira, o Planalto mandou segurar o relatório que não via problemas substanciais com as urnas para eventual --e indicou que poderia elaborar um outro em caso de vitória de Lula.

A versão, impossível de verificar, trará um imbróglio institucional de cara para Lula lidar. Mesmo que não se confirme o cenário, o processo de conversa com os fardados não será simples, e a acomodação com o petista deverá ocorrer com o que o mesmo militar chama de "frieza institucional".

O motivo não é tanto o entusiasmo relativo de alguns setores do serviço ativo com o governo de Jair Bolsonaro (PL), capitão reformado que saiu do Exército pela porta dos fundos, com fama de indisciplinado.

A questão central é que ainda não foi superado, principalmente no Exército, o mal-estar com o petismo que levou à adesão de nomes influentes da reserva primeiro à candidatura de Bolsonaro, depois ao governo em si --que atraiu também nomes da ativa, o mais notório deles Eduardo Pazuello, general que ocupou de forma controversa o Ministério da Saúde durante a pandemia.

Isso foi deixado claro para o comando petista da campanha já em 2021, quando alguns interlocutores de Lula procuraram generais da reserva com trânsito entre ex-comandados, como o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional Sérgio Etchegoyen e o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo.

Nomes como o ex-ministro da Defesa sob Lula Nelson Jobim e o senador Jorge Viana (PT-AC), entre outros, ouviram ponderações que são válidas até hoje: os militares não queriam conversar.

A indicação de Geraldo Alckmin, o ex-tucano que aderiu ao PSB para embarcar na canoa lulista, à vaga de vice na chapa do ex-presidente foi apontada por oficiais-generais ouvidos pela reportagem como uma sinalização de moderação, mas nem isso animou os fardados a aceitar reuniões discretas.

Agora, com o petista eleito, a relação é incontornável. Como o livro de memórias do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas mostrou, o antipetismo que dominou a sociedade a partir dos protestos de 2013, desembocando na eleição improvável de Bolsonaro, se fez presente nos quartéis.

Somou-se isso à convicção de uma geração de generais, almirantes e brigadeiros formados nos estertores da ditadura militar de que seria possível recuperar a imagem dos fardados como co-gestores de governo, algo que remete ao histórico intervencionista das Forças na história brasileira, e o caldo ficou pronto.

A mistura incluía então menos uma ojeriza a Lula em si, dado que em seu governo houve diversos avanços materiais para os militares, mas sim à sua sucessora ungida, Dilma Rousseff (PT). As revelações de corrupção da Operação Lava Jato e a condução da Comissão da Verdade pela petista, que os fardados nunca aceitaram por não incluir apuração de crimes da luta armada contra o regime, envenenaram o ar.

Coube ao próprio Villas Bôas mostrar ao mundo político o processo que se insinuava, quando ameaçou o Supremo Tribunal Federal em um tuíte às vésperas da votação de um habeas corpus que poderia ter evitado os 580 dias de prisão de Lula, em 2018.

O movimento foi uma gota d'água, não perdoada também por Lula, que já disse que teria exonerado o então comandante se algo assim tivesse ocorrido em seu governo. O azedume se viu em falas consideradas desastradas do ex-presidente sobre as Forças durante a campanha.

No começo do ano, houve até uma sinalização indireta dos militares a Lula, por meio de alguns gestos. Foi adotado um protocolo contra fake news no Exército, as Forças adiantaram exercícios para manter a tropa em alerta contra violência eleitoral e o comandante da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, disse à Folha de S.Paulo que os fardados prestariam normalmente continência a quem vencesse a eleição.

Não deu muito certo, dado que o então ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, virou maior escudeiro do presidente, a ponto de ser indicado vice na chapa de Bolsonaro. E o seu substituto, o até então moderado comandante do Exército Paulo Sério, foi colocado na linha de frente da contestação do chefe ao sistema de urnas eletrônicas.

Paulo Sérgio até logrou sair um pouco do holofote, mas o estrago de imagem estava feito e as suspeitas entre as hostes lulistas acerca do risco de apoio militar a um cenário de ruptura, só cresceram.

Apesar das movimentações de Braga Netto e Paulo Sérgio, contudo, isso nunca pareceu muito material. O principal colegiado da Defesa brasileira, o Alto-Comando do Exército, viu talvez 3 dos 16 generais que o integram serem ambíguos acerca do questionamento do sistema eleitoral. Que isso não se confunda com apoio Judiciário em si: as críticas de Bolsonaro a medidas de ministros do Supremo encontram eco na cúpula fardada.

O mesmo ocorreu na semana final da campanha, com generais concordando com as críticas acerca do comportamento do Tribunal Superior Eleitoral em relação a queixas frágeis da campanha bolsonarista.

Daí a um golpe, contudo e apesar do histórico do Exército no tema, havia uma grande distância --se não por convicções democráticas, mas pela falta de condições objetivas: o Brasil seria desplugado do mundo, e o golpismo de Bolsonaro foi denunciado preventivamente por empresários, banqueiros, a mídia e até os Estados Unidos, fiadores da ditadura de 1964.

Isso dito, com Lula presidente a acomodação será desagradável a muitos, mas a ordem de resignação em nome da disciplina está dada --salvo em algum complô ainda inaudito urdido por Bolsonaro. Do lado petista, a bonança relativa nos anos de Lula no poder é apresentada como um contraponto às benesses que a categoria experimentou com o capitão reformado, como a reestruturação da carreira.

Em valores corrigidos do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, de Londres, quando Lula sentou-se na cadeira presidencial em 2003, o gasto militar brasileiro era de US$ 45 por habitante. Ao sair, oito anos depois, era de US$ 175.

Claro, o grosso disso foi para aposentados e pensionistas, mas grandes projetos de rearmamento que hoje dão frutos como os novos submarinos oriundos do acordo militar com a França de 2009 foram bolados nos anos Lula.

O problema maior para os fardados é de natureza existencial. Se Bolsonaro os catapultou ao centro do palco, eles pagaram o preço disso com a maior crise militar desde 1977, quando caíram comandantes e ministro em 2021 devido à negativa de Fernando Azevedo de embarcar no negacionismo bolsonarista na Saúde.

Mais, o episódio em que Pazuello não foi punido por participar de ato político com o chefe é visto como um marco negativo para a indisciplina militar, embora o temor de uma multiplicação de casos não tenha se confirmado.

Como o poder civil no Brasil só recorre a militares quando precisa de armas para um golpe, Bolsonaro representou um experimento novo, desastroso à sua maneira. Sob Lula, a tendência é a volta aos quartéis, o que, nas palavras de um outro integrante da cúpula militar, já estará de bom tamanho depois da balbúrdia recente.


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