SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Com a autodeclarada missão de não se comportar como avestruz, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) passou a adotar na reta final da eleição uma postura mais rígida na análise de conteúdos associados a desinformação.
Além de restringir fake news evidentes ou acusações infundadas como a que ligou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao caso Celso Daniel, o tribunal tem adotado interpretação restritiva em relação a afirmações deturpadas, ilações e conteúdos visuais que possam induzir o eleitor a erro.
O novo entendimento da corte tem como pano de fundo resolução de 2021 que veda não só a veiculação de fatos "sabidamente inverídicos" contra o processo eleitoral, mas também os "gravemente descontextualizados".
Inicialmente voltada a proteger o sistema de votação em si, ela tem sido evocada também no caso de ataques a candidatos.
A postura mais combativa foi vocalizada pelo presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, em sessão no último dia 1º.
"Me parece muito importante o Tribunal Superior Eleitoral fixar a partir de hoje essa diretriz, a questão não é só a inverdade, a mentira, a notícia falsa, a notícia fraudulenta, fake news, mas também a utilização, o desvirtuamento na finalidade da divulgação [de notícia]", disse.
Naquela data, o plenário do tribunal determinou a remoção de postagens do presidente Jair Bolsonaro (PL) que associavam Lula à facção criminosa PCC.
A relatora do caso, ministra Maria Claudia Bucchianeri, havia opinado contra a remoção sob o argumento de que o presidente se baseava em áudio de integrante da facção que havia sido veiculado em reportagem. Nele, o interlocutor afirmava: "com o PT nois (sic) tinha diálogo. O PT tinha com nois (sic) diálogo cabuloso".
A maioria dos ministros discordou. Eles avaliaram que as postagens descontextualizavam a reportagem citada e que a mera fala de integrante da facção não permitia estabelecer uma relação entre o PT e o crime organizado.
Em sua fala na ocasião, o ministro Sérgio Banhos afirmou que estava inclinado em concordar com Bucchianeri devido à jurisprudência de 2018. Mas, citando o ministro Ricardo Lewandowski, disse que, "dado o contexto histórico", em que se buscava "resgatar o espírito fraterno" dos brasileiros, apoiaria a determinação de remoção dos conteúdos.
Três semanas depois, no dia 22, outro julgamento tratou de pedido de remoção de dois vídeos com falas de Bolsonaro sobre o programa Escola Sem Homofobia. O ministro Carlos Horbach posicionou-se contra a remoção de um dos vídeos, em que o atual presidente se referia ao material como "kit gay".
Para Horbach, a filmagem era um registro histórico que inclusive permitiria ao eleitor saber que Bolsonaro já teve postura que pode ser considerada homofóbica.
A argumentação foi semelhante à usada por ele no em caso semelhante em 2018. Mas neste ano prevaleceu a posição de Moraes de que se tratava de notícia fraudulenta, e decidiu-se pela remoção dos dois vídeos.
Os julgamentos do kit gay e da associação entre PT e PCC foram citados em três decisões proferidas na última semana por Bucchianeri.
Nelas, a ministra afirma que, em seu "entendimento pessoal", as intervenções da Justiça Eleitoral devem ser mínimas, dando-se preferência à liberdade de expressão, mas que o TSE formara postura diferente, considerando "o peculiar contexto inerente às eleições de 2022", com "grande polarização ideológica".
Com base nisso, Bucchianeri determinou o bloqueio de um filtro para fotos no Twitter que permitia ao usuário colocar um pedido de voto em Lula com a identidade visual da campanha de Ciro Gomes (PDT). Solicitou também a identificação do perfil @jairmearrependi, que utilizou o mesmo. Para ela, a situação poderia envolver "peculiar situação de 'desinformação visual'".
A decisão foi criticada por entidades de defesa da liberdade de expressão.
Outras decisões com a mesma fundamentação foram proferidas pela ministra para determinar a retirada de um vídeo em que Ciro afirma que o PSOL é financiado por George Soros e de outro em que um candidato do PT afirma que Ciro entrou para o "gabinete do ódio" de Bolsonaro.
Para o advogado Fernando Neisser, membro fundador da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), a mudança de postura do TSE é uma consequência natural do clima beligerante da campanha presidencial deste ano.
Decisões conflitantes permanecem Apesar do posicionamento mais duro contra a desinformação, ainda há pontos de divergência entre os ministros quando se olha um universo mais abrangente de decisões da Justiça Eleitoral como um todo.
A conclusão é do Observatório da Desinformação Online nas Eleições de 2022, parceria do CEPI (Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação) e do Núcleo de Pesquisa em Concorrência, Políticas Públicas, Inovação e Tecnologia da FGV-SP.
Desde o início da campanha eleitoral, o projeto coletou 224 decisões do TSE e dos tribunais regionais sobre desinformação nas eleições, a maioria com pedidos de remoção de conteúdo. Das 196 requisições nesse sentido, 54% foram deferidas.
Entre esses conteúdos está o vídeo "Cartilha do Governo Lula ensina jovens a usar crack", divulgado no início de agosto pela ex-ministra Damares Alves nas redes sociais. Com base na interpretação de que havia grave descontextualização, o ministro Raul Arraújo determinou a remoção.
Outros materiais cuja remoção foi pedida com a mesma argumentação, porém, permaneceram no ar. Foi o caso de vídeos divulgados pelos filhos e por aliados de Bolsonaro com uma fala de Lula sobre a pandemia em que o candidato afirmou "ainda bem que a natureza criou o monstro do coronavírus".
Omitiu-se a continuação de que o vírus estaria fazendo as pessoas enxergarem que "apenas o Estado é capaz de dar solução a determinadas crises".
Outro exemplo foi o da manutenção pelo ministro Raul Araújo de um post satírico feito no Twitter pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) com um trecho de uma entrevista de Lula e a legenda: "Eu não vou enganar o povo. MAIS UMA VEZ. Lula entra no modo sincerão. Ex-presidiário promete não enganar o povo mais uma vez".
O professor Caio Mario Pereira Neto e os pesquisadores Helena Secaf e Antonio Bloch Belizario avaliam que há uma rigidez maior nas decisões que atacam a legitimidade das eleições. Já o conceito de "gravemente descontextualizado", afirmam, tem sido aplicado quando o sentido original do conteúdo foi inteiramente subvertido.
"Ainda há zonas cinzentas na jurisprudência da Justiça Eleitoral, mas entendemos que a Justiça tem procurado diferenciar fatos --que podem ser impugnados quando inverídicos- e opiniões -estas fora do escopo de moderação-, o que é um esforço importante a ser feito na garantia da liberdade de expressão", dizem.
Sobre a interpretação do que é "sabidamente inverídico", eles apontam que as decisões do primeiro turno mostram que uma parte dos magistrados aderiu ao precedente do TSE de aplicar o conceito quando não há necessidade de investigação adicional, enquanto outra parcela recorre a fontes externas para verificar a veracidade do que foi questionado.
"Essas diferentes perspectivas tendem a gerar alguma incoerência que resulta em um risco de decisões conflitantes (insegurança jurídica), que ainda precisam ser aperfeiçoados na jurisprudência da Justiça Eleitoral".
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