PORTO ALEGRE, RS, SALVADOR, BA, E BELO HORIZONTE, MG (FOLHAPRESS) - Cidades pequenas e médias do país enfrentam um clima de tensão com a atuação de grupos bolsonaristas radicais, o que inclui hostilidades, perseguição e boicotes que atingem tanto apoiadores convictos como eleitores ocasionais do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Listas organizadas pela ala mais extremista de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) circularam em cidades de ao menos 13 estados, além do Distrito Federal, segundo levantamento da Folha de S.Paulo.

Elas atingem grandes empresas, pequenos prestadores de serviços, médicos e advogados e até mesmo uma unidade da Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais). Os casos acenderam o alerta da Polícia Civil e de Promotorias estaduais, que instauraram inquéritos para apurar os boicotes.

No interior do Rio Grande do Sul, as listas feitas contra eleitores de Lula afetaram pequenos comércios, familiares de empresários, franqueados alheios à política e entidades.

Um dos casos mais emblemáticos ocorreu em Casca, município de 9.000 habitantes na região nordeste do estado, em que uma mensagem intimava petistas a colocarem uma estrela do PT na porta dos seus negócios.

A prática motivou comparações com a ascensão no nazismo na Alemanha, em que comerciantes judeus foram obrigados a se identificar com a Estrela de Davi.

O Ministério Público investiga o episódio, que envolveu ainda uma lista de boicote e uma paralisação de 120 estabelecimentos após eleição --alguns, espontâneos, outros intimidados para aderir.

Em Caxias do Sul, a gerente de uma franquia de cosméticos conta que vem sendo hostilizada ao fazer ofertas em um aplicativo de mensagens.

A profissional, que preferiu não se identificar, diz receber respostas como "não vou mais comprar produtos dessa marca que financia político ladrão". A empresa orientou a equipe a responder que o estatuto dela proíbe doações dos seus diretores a políticos e que, se eles se posicionaram politicamente, foi por iniciativa individual.

Em Ijuí, cidade gaúcha de 85 mil habitantes, a presença do nome da Apae do município em uma lista de cerca de 50 empresas e entidades a serem boicotadas preocupou Avani Zwanziger, presidente da associação local.

Doadores regulares começaram a cancelar contribuições, causando prejuízo imediato de R$ 25 mil à entidade, o suficiente para comprometer a área de assistência social, que é toda bancada por donativos e ampara as famílias das 589 pessoas com deficiência atendidas.

Avani, que não faz ideia do motivo de ter entrado na lista, repudiou o boicote, destacou o caráter apartidário da entidade e busca novos doadores. "Talvez alguém tenha visto um funcionário falando algo sobre política. Talvez tenha sido uma vingança pessoal. Vai saber. Mas é muito triste", diz.

Em Palmeira das Missões (RS), cidade de 33 mil habitantes, um empresário da construção civil que pediu para não se identificar também apareceu em uma lista. Mais do que os prejuízos econômicos, diz temer por desdobramentos do discurso de ódio exacerbado nas eleições.

Para ele, pessoas da região que falavam que Lula era o diabo não vão respeitar a vitória do petista. Enquanto busca medidas judiciais, o empresário diz temer pela filha pré-adolescente, que foi hostilizada na escola.

Listas de boicote a comerciantes circularam também em cidades do interior de São Paulo. Proprietário de uma livraria em Araras, Eduardo Pedreschi, 59, foi um dos alvos.

"É desagradável, triste, mas é uma atitude que não reflete a opinião dos moradores da cidade. Vejo mais como um comportamento de uma minoria que está, para dizer o mínimo, confusa", afirma.

Pedreschi diz que não chegou a ser hostilizado e até recebeu manifestações de solidariedade. Mas diz lamentar um ataque orquestrado à única livraria da cidade: "Construí uma reputação a duras penas em 20 anos. Se não estivesse solidificado, poderia sofrer."

Fernando da Fonseca, 57, proprietário de uma casa lotérica em Batatais (350 km da capital), também foi alvo de uma lista de boicotes. Ele afirma que, depois da eleição, passou a sentir falta de três ou quatro clientes bolsonaristas que costumavam ir à lotérica com frequência.

"É meio estranho quando uma pessoa está habituada a vir sempre no mesmo lugar e, de repente, para de vir. Mas acho que, quando as coisas esfriarem, eles vão voltar. Um deles já voltou essa semana", afirma.

Fernando diz que não é exatamente um petista, mas votou em Lula nesta eleição. Diz que o que causou a fúria dos bolsonaristas mais radicais foi o fato de uma das funcionárias da lotérica ter participado de um vídeo em favor do petista nas redes sociais.

Em Barretos, norte do estado, a lista incluiu até mesmo advogados, o que motivou uma manifestação e repúdio da subseção local da OAB.

No Recife, circulou uma lista de médicos que apoiaram Lula. Em nota, o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco disse que a lista "tem caráter constrangedor, intimidatório e discriminatório" e informou que acionaria a Justiça.

Em Cláudio, cidade de 30 mil habitantes no centro-oeste de Minas, foram ao menos três listas divulgadas em redes sociais, sendo que uma delas incluía ataques pessoais aos supostos eleitores do PT.

Uma prestadora de serviços estéticos recebeu a seguinte menção na lista bolsonarista: "Vota em Lula porque tem muitos filhos sem saber quem é o pai e tem esperança em receber bolsa família".

A pressão contra quem não votou em Bolsonaro, diz um dos empresários listados, vem das características econômicas da cidade, que possui fábricas do setor metalúrgico cujos donos apoiaram o presidente e exercem influência sobre os empregados.

Outra lista que circulou hostilizava membros da Câmara Municipal. O vereador Darley Lopes (Cidadania), que diz que em momento algum revelou em quem votaria, acionou a Justiça: "Sempre acreditei na democracia. Respeitar os princípios democráticos é o básico para se viver em sociedade."