SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Os ministros do Supremo Tribunal Federal deverão se concentrar sobre três questões no julgamento das ações que questionam a legalidade das bilionárias emendas orçamentárias controladas pela cúpula do Congresso, marcado para começar nesta quarta-feira (7).

A mais simples de resolver é a falta de transparência, origem das primeiras críticas feitas ao obscuro mecanismo criado pelos líderes do centrão no governo Jair Bolsonaro (PL) para azeitar barganhas políticas e repassar verbas a bases eleitorais de deputados e senadores.

No fim de 2021, quando as ações chegaram ao tribunal, a primeira coisa que a ministra Rosa Weber fez como relatora dos processos foi determinar que o Congresso tomasse providências para dar publicidade aos políticos que patrocinam as emendas e seus beneficiários.

O esquema criado pelo centrão permite que o relator-geral da Comissão Mista de Orçamento reserve uma parte das verbas no Orçamento da União para despesas indicadas pelos parlamentares e lhe dá poderes para definir quais despesas serão de fato executadas ao longo do ano.

A ordem da ministra, que hoje preside o STF, obrigou o Congresso a rever normas e criar um sistema para divulgação de informações sobre as emendas. Ele tornou o processo mais transparente, mas manteve lacunas que contrariam o espírito da determinação do tribunal.

A mais grave é que as planilhas da Comissão Mista de Orçamento apontam "usuários externos" como patrocinadores de muitas emendas do relator, categoria que abriga pessoas que muitas vezes apenas assumem as indicações para encobrir os parlamentares responsáveis.

"O Congresso burlou a exigência de transparência total e ganhou tempo com isso, reduzindo o alcance da jurisdição do tribunal", diz Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.

As manobras foram toleradas até aqui, mas dificilmente passarão em branco no julgamento. O plenário do tribunal referendou por ampla maioria as determinações de Rosa Weber em 2021. O ministro Kássio Nunes Marques criticou o detalhismo das medidas, mas não seu sentido.

Outra questão que os ministros terão que enfrentar é a falta de critério para distribuição do dinheiro reservado pelas emendas do relator, que têm sido usadas para favorecer parlamentares alinhados com o governo e a cúpula do Congresso, em detrimento de seus adversários.

Emendas orçamentárias individuais e propostas assinadas por bancadas estaduais são reguladas por normas próprias, que garantem distribuição isonômica dos recursos entre os congressistas, independentemente de preferências partidárias ou opiniões sobre o governo.

As regras para as emendas individuais foram inscritas na Constituição em 2015 e as normas para as emendas de bancadas, em 2019. Nos dois casos, ficou estabelecido que a execução dessas emendas é obrigatória, o que impede o governo de segurar a liberação dos recursos.

Além disso, as regras estabelecem certos limites para aplicação dos recursos, exigindo que a maior parte seja destinada a ações na área de saúde, e restringem os valores reservados para as emendas a uma fatia das receitas federais, para impedir sua expansão sem controle.

Nada disso existe no caso das emendas do relator, que são reguladas por normas internas do Legislativo, alteradas todos os anos. Essas regras ampliaram muito o campo de atuação do relator, autorizando o uso das suas emendas para financiar quase todo tipo de despesa.

Quando o tribunal referendou as decisões de Rosa Weber, em 2021, ela e o ministro Gilmar Mendes apontaram a diferença existente entre as normas jurídicas que regulam os vários tipos de emenda como uma questão a ser enfrentada pelo tribunal, mas nada fizeram a respeito.

O julgamento do mérito das ações oferece uma oportunidade para correções, mas os ministros entrarão num campo minado se forem mexer nisso. A Constituição garante ao Legislativo a prerrogativa de alterar a proposta orçamentária do Executivo e decidir como fazê-lo.

"Julgar as normas internas do Congresso nesse caso seria uma interferência descabida do STF", diz José Maurício Conti, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. "O Congresso tem autonomia para adotar uma regra não isonômica ou fazer diferente se quiser."

A possibilidade de diferenciação entre aliados e oposicionistas tornou as emendas de relator um instrumento essencial para gerir as relações entre o Executivo e o Legislativo, permitindo que o alinhamento com o governo seja premiado na divisão das verbas.

Sucessivos governos contaram com instrumentos semelhantes nos últimos anos, mas os partidos que questionam a legalidade das emendas do relator argumentam que a falta de isonomia contraria um dos princípios que a administração pública deve seguir, a impessoalidade.

Num parecer sobre as contas do governo Bolsonaro no exercício de 2021, auditores do Tribunal de Contas da União argumentam também que a falta de critério viola normas constitucionais que dispõem sobre a aplicação de recursos destinados à saúde e à assistência social.

As emendas do relator se apropriaram de uma fatia crescente dos escassos recursos disponíveis no Orçamento para obras e outros investimentos, e a discricionariedade adquirida pelo Congresso no manejo das verbas é outra questão que deve ser debatida no julgamento.

O projeto de lei enviado por Bolsonaro com sua proposta para o Orçamento de 2023, ainda em discussão, reserva R$ 19,4 bilhões para emendas individuais e de bancadas estaduais, cuja execução é obrigatória, e separa outros R$ 19,4 bilhões para as emendas do relator.

Com o mecanismo existente hoje, o relator do Orçamento continua trabalhando depois que a lei orçamentária é sancionada pelo presidente da República, interferindo o ano inteiro na execução das despesas ao definir onde os recursos reservados por suas emendas serão gastos.

Diferentemente do que acontece com emendas individuais e de bancada, o governo pode segurar a liberação das verbas das emendas do relator, usando os recursos como moeda de troca em negociações com os aliados, mas quem define o destino dos valores é o Legislativo.

Para especialistas como Fernando Moutinho, da Consultoria Legislativa do Senado, o Congresso está usurpando uma prerrogativa do Executivo ao interferir dessa maneira na execução das despesas, violando outro princípio constitucional, o da separação dos Poderes.

Em 2021, Rosa Weber mandou suspender a execução das emendas do relator até que suas exigências de transparência fossem atendidas, mas logo voltou a liberar os recursos, cedendo aos argumentos do Congresso antes mesmo do cumprimento das medidas que determinou.

O recuo deu ao Congresso tempo para reformular as normas internas que disciplinam as emendas, impondo algum limite à sua expansão, mas esfriou o entusiasmo dos que apostavam nas ações movidas no STF como um meio para promover mudanças mais drásticas no mecanismo.

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que na campanha eleitoral falava em acabar com o sistema, agora está em busca de uma acomodação com o centrão, com quem sua equipe de transição negocia espaço no Orçamento do próximo ano para programas sociais e outros gastos.

"Eu sempre fui favorável que o deputado tenha emenda", disse Lula na sexta (2). "É importante que ela não seja secreta, e é importante que a emenda seja dentro da programação de necessidade do governo, e que essa emenda seja liberada de acordo com os interesses do governo."

A aproximação de Lula com o centrão tende a inibir os ministros do Supremo que defendem mudanças na regulação das emendas do relator, além da exigência de maior transparência. "O tribunal não vai comprar sozinho uma briga como essa", afirma a procuradora Graziane.

Há também entre os especialistas dúvidas sobre a eficácia que uma intervenção mais ampla do STF teria. "O Congresso se fortaleceu muito e deverá reagir a qualquer decisão do tribunal", diz Hélio Tollini, da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados, crítico das emendas.


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