PEDRÃO, BA (FOLHAPRESS) - Em um terreno descampado de vegetação rasteira, Ademário Martins Cavalcante, 68, canta com voz grave uma toada que fala sobre a vida de um vaqueiro que vai em busca do gado dentro do mato fechado, entre serras e capoeiras.

De pé ao seu lado, Erasmo Carvalho do Rosário, o Dai, tem os olhos semicerrados e rememora a trajetória de seus 93 anos de vida no campo, sendo a maior parte dela em cima de um cavalo: "Eu nasci os dentes trabalhando com gado. Dos fazendeiros daqui, nenhum fazia nada sem mim".

Erasmo e Ademário estão entre os mais antigos vaqueiros de Pedrão, cidade do sertão da Bahia que legou à história um dos capítulos mais instigantes da luta pela Independência do Brasil: a participação dos Encourados de Pedrão nas batalhas contra os portugueses que aconteceram na Bahia há 200 anos.

No final de 1822, um grupo de 39 vaqueiros iniciou uma marcha por estradas rudimentar entre os caminhos do sertão. Saiu de Pedrão, foi até Cachoeira, no Recôncavo, e seguiu com o restante das tropas para enfrentar a resistência portuguesa em Salvador.

Os Encourados de Pedrão, também chamados Guerrilha Imperial dos Voluntários de Pedrão ou Companhia de Cavalaria de Couraças, foram liderados pelo frei Maria do Sacramento Brayner.

O religioso combateu na Revolução Pernambucana de 1817, ficou preso por quatro anos em Salvador e depois foi enviado a Pedrão, na época um distrito da cidade de Irará (140 km da capital).

Não houve tempo para confeccionar fardamentos ou armaduras, e os soldados de Pedrão decidiram lutar usando as vestimentas tradicionais de vaqueiro, que inclui chapéu, gibão, colete e perneira de couro.

A roupa era usada pelos vaqueiros para ir em busca do gado em meio à vegetação da caatinga, que inclui mandacarus com espinhos, árvores de copa baixa e plantas que causam queimaduras, como as urtigas.

"Os Encourados de Pedrão são um reflexo muito direto dessa gente que povoava os caminhos do sertão. É um povo miscigenado que descende especialmente de indígenas e de negros escravizados que fugiram do litoral e estabeleceram suas comunidades no interior", explica o historiador Rafael Dantas.

Depois de deixarem Salvador acossados pelos portugueses e rumarem para Cachoeira, os apoiadores da Independência organizaram a retomada da capital com a criação de batalhões patrióticos. Avançaram por terra e cercaram Salvador, impedindo a entrada de armas e alimentos.

Em outubro de 1822, o frei Brayner teria acionado a Junta de Cachoeira e se voluntariado para recrutar homens da região de Pedrão para engrossar as fileiras brasileiras na luta pela Independência.

O pedido foi acolhido pelos dirigentes das tropas brasileiras, que recrutavam mais soldados para seus batalhões e neutralizar as ofensivas do lado português.

Foram disparados pedidos de reforços para as principais freguesias, vilas e cidades do interior, incluindo aquelas do sertão que tinham como força motriz a criação de gado, produção de couro e fumo de corda. Famílias tradicionais da região ganharam peso nas decisões, e passaram a se envolver mais diretamente nas lutas que levaram à Independência na Bahia.

O frei Brayner recrutou os vaqueiros mais habilidosos da região, acostumados a enfrentar ambientes hostis e a cavalgar em matas ásperas e fechadas --na época, os pastos para criação de gado não tinham se espalhado pelos sertões e as áreas de caatinga tinham uma vegetação mais fechada.

Diz o historiador Rafael Dantas: "Eles lutaram nos arredores de Salvador e tiveram uma participação importante nas batalhas. Apesar de não ser um grande número, eram homens que dominavam muito bem a arte de montar cavalo".

Também foram enviados para o campo de batalha trabalhadores de outras freguesias do interior da Bahia, mas os Encourados ganharam maior relevo simbólico justamente pelas indumentárias de couro.

A produção histográfica sobre a atuação dos Encourados de Pedrão na guerra pela Independência ainda é restrita. Mas as histórias da participação dos vaqueiros nas batalhas se mantiveram vivas na oralidade do povo do sertão.

A tradição dos Encourados se manteve nas gerações seguintes: vaqueiros com suas roupas de couro participavam de festividades locais e eventos religiosos, até que passaram a desfilar nos cortejos e comemoração da Independência da Bahia, que acontece todos os anos no 2 de julho.

A partir de 1993, os Encourados passaram a desfilar em Salvador --traziam seus cavalos para a cidade e faziam a abertura do cortejo, à frente da cavalaria da Polícia Militar.

A cena se repetiu até 2013, quando os Encourados deixaram de desfilar após ações na Justiça de entidades ligadas à causa animal, que alegaram que o transporte dos animais e a participação nos desfiles poderiam resultar em maus tratos.

Membro da Associação dos Encourados de Pedrão, da qual foi presidente por dois mandatos, o técnico em agropecuária Anderson Maia, 42, diz que a suspensão dos Encourados dos desfiles foi um baque para os associados.

"Muita gente desanimou, jogou a toalha. Teve gente que até vendeu os arreios e se afastou da associação", lembra Anderson, que atualmente tenta organizar o retorno dos Encourados de Pedrão para o cortejo de 2023, quando será comemorado o bicentenário da Independência da Bahia.

O historiador Miguel Telles, que também faz parte da associação dos Encourados, diz que o veto aos Encourados no cortejo do 2 de Julho é uma afronta à memória da participação popular e do povo do interior nas lutas pela Independência. E defende o retorno dos vaqueiros à maior festa cívica da Bahia.

"O desfile dos Encourados é uma coisa de arrepiar, alimenta a alma da gente. É o vaqueiro trazer a sua lida para a capital e mostrar 'eu existo'. Somos um país independente porque nossos antepassados participaram dessa luta", afirma.

Ademário Martins Cavalcante, que há 35 anos faz parte dos Encourados, diz que é preciso reconhecer a tradição dos vaqueiros. E afirma que, quanto tiver vida e saúde, estará em cima de um cavalo.

"Meu prazer é ser vaqueiro. Eu estou com braço doente e uma costela doente, mas se entrar um boi no mato eu vou ajudar a tirar."


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