BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Os atos golpistas contra os três Poderes realizados no dia 8 de janeiro representaram o ponto alto de um histórico de investidas antidemocráticas patrocinadas por Jair Bolsonaro (PL) desde o início do seu mandato, em 2019.
O golpismo do ex-presidente começou a se intensificar em 2020, quando em março participou de uma manifestação a favor da intervenção militar. Expôs-se de vez na live com ataques às urnas eletrônicas em julho de 2021 e no 7 de setembro do mesmo ano, quando proferiu ameaças contra o Supremo Tribunal Federal e o ministro Alexandre de Moraes.
Ao longo de 2022, ano eleitoral, os ataques do então presidente aumentaram e desaguaram nas tentativas de utilizar órgãos públicos para tumultuar as eleições, como ocorreu no dia do segundo turno com a Polícia Rodoviária Federal abordando ônibus de transporte de passageiros e, em seguida, permitindo bloqueios em rodovias.
A inação da Polícia Militar do Distrito Federal no dia 8 e a descoberta da minuta de decreto para reverter o resultado das eleições, duas situações com relação direta com Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, reforçaram a suspeita de que o ex-mandatário e seu entorno não só incentivavam como não descartavam um golpe para se manter no poder.
A Folha esteve no acampamento de bolsonaristas em frente ao Quartel-general do Exército em Brasília após os ataques e permaneceu até que as forças de segurança esvaziassem o local na manhã da segunda (9).
Em conversas com dezenas de golpistas, dois temas preponderam: a suposta fraude das urnas eletrônicas e as ações do Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior Eleitoral contra Bolsonaro.
Os temas estão diretamente atrelados ao discurso assumido por Bolsonaro a partir de 2020.
Golpismo acirra em 2020 com foco no STF Ainda naquele ano, após o STF ordenar operação contra bolsonaristas envolvidos em ofensas contra ministros, o então presidente fez um dos primeiros ataques direto ao STF --"Acabou, porra".
Naquele momento, o tribunal atuava contra as investidas golpistas por meio do inquérito das fake news, aberto por ordem do então presidente da corte, o ministro Dias Toffoli, e relatado por Moraes, e também pela investigação sobre os primeiros atos antidemocráticos de apoiadores do presidente.
Além dos ataques sofridos por causa dos desdobramentos dessas apurações, responsáveis por buscas e prisões naquele ano, o STF ainda passou a entrar na mira do presidente e de seus apoiadores por causa das decisões relacionadas à gestão da pandemia --como a que liberou estados e municípios a tomarem decisões sobre como enfrentar a Covid-19.
2021, foco das fake news se volta a urnas Com a virada para 2021, aos ataques contra o STF se somaram o discurso falso sobre deficiência no sistema eletrônico de votação e a disseminação de desinformação sobre fraudes em eleições passadas.
Como mostrou a investigação da PF, Bolsonaro e militares já buscavam informações sobre as urnas desde 2019, mas, a partir de 2021 as investidas aumentaram.
Naquele ano, em junho, o TSE cobrou a apresentação de provas sobre as denúncias.
Com o prazo dado pela Justiça Eleitoral se esvaindo, Bolsonaro subiu o tom. Em 29 de julho, com a ajuda de Anderson Torres, fez a live em que levantou suspeita de fraude nas eleições sem apresentar provas.
Dias depois, em 4 de julho, vazou um inquérito sigiloso de um ataque hacker ao TSE para reforçar a tese falaciosa de irregularidades nos pleitos anteriores.
As investidas resultaram em mais inquéritos contra o então presidente, e seus apoiadores e tensionaram ainda mais a relação com o STF.
No 7 de setembro de 2021, Bolsonaro xingou Alexandre de Moraes em cima de um caminhão de som na avenida Paulista, em São Paulo. Com a tensão em nível máximo, interlocutores entraram em campo, entre eles o ex-presidente Michel Temer (MDB), e a temperatura baixou por um período.
2022: adesão dos militares e omissão da PGR Em 2022, Bolsonaro colocou de vez os militares no front de ataque ao sistema eleitoral, incluindo o ministério da Defesa na fiscalização e testes das urnas.
A postura do então presidente foi facilitada pela inação do procurador-geral da República, Augusto Aras. Ao longo de todo mandado, ele não se valeu do cargo para combater o impulso golpista, pelo contrário, pediu arquivamento de inquéritos e foi contra diversas medidas solicitadas pela Polícia Federal.
A inércia de Aras contribuiu para a hipertrofia de Alexandre de Moraes, que passou a tomar decisões de ofício e adentrar em funções que deveriam ter sido desempenhadas pela PGR.
Com a derrota em 30 de outubro, os apoiadores de Bolsonaro passaram a defender a intervenção militar e a promover bloqueios em vias e se agruparem nas portas dos quartéis do Exército.
Janeiro, 2023: antecedentes do ataque Foram esses apoiadores que, a partir do dia 6 de janeiro, passaram a inflar ainda mais o acampamento em Brasília. No dia 7, os golpistas, em lives e grupos de mensagem, já falavam da ida para o entorno dos prédios do STF, Congresso e Planalto.
As ameaças começaram a se confirmar na tarde do domingo. Eles saíram do QG do Exército, a cerca de 8 quilômetros da praça dos Três Poderes, e partiram em direção à Esplanada dos Ministérios.
O primeiro alvo foi o Congresso. Em seguida, o Palácio do Planalto e o STF.
Horas decisivas em Brasília e Araraquara Pouco tempo após manifestantes invadirem o Congresso, por volta de 14h40, o governo Lula montou dois comitês de crise em Brasília.
Em um deles, no hotel onde Lula se hospeda, o ministro da Secom (Secretaria de Comunicação Social), Paulo Pimenta, reuniu a equipe que cuidaria da comunicação e mais tarde articularia a declaração que o presidente deu em Araraquara (SP).
No Ministério da Justiça, foi montado outro gabinete. Por volta de 15h20, chegou ao local o ministro Flávio Dino (Justiça). Depois, foram para lá Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e José Múcio (Defesa). O general Gonçalves Dias (Gabinete de Segurança Institucional) se juntou ao grupo à noite. O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, também esteve no ministério.
Enquanto isso, ainda no início das invasões na Esplanada, Lula desembarcava em Araraquara. Acompanhado pelo prefeito Edinho Silva (PT), ele assistiu, no carro, às imagens do cerco ao Congresso, muitas delas publicadas pelos próprios invasores nas redes sociais.
Após breve visita a áreas atingidas pelas chuvas no município paulista, o petista e comitiva foram ao gabinete do prefeito, de onde o presidente disparou telefonemas, queixando-se da facilidade com que os bolsonaristas invadiram o Palácio do Planalto.
No gabinete de Edinho, ele telefonou para Dino, Múcio e para o chefe do Gabinete de Segurança Institucional. O petista cobrava seus ministros e batia, duramente, em Ibaneis Rocha (MDB), governador do DF.
Em Araraquara, Lula ainda conversou por telefone com ministros do Supremo, entre eles Gilmar Mendes.
Início dos ataques: Ibaneis na mira do STF e do governo Lula Integrantes do STF se mobilizaram também rapidamente e passaram a cobrar uma medida contra Ibaneis.
Segundo membros do governo Lula, a presidente do Supremo, Rosa Weber, havia recebido mais cedo a informação de que os atos seriam pacíficos. Diante do caos, Rosa voltou a procurar as autoridades locais e o governo federal em busca de respostas e ações.
Naquele momento, os integrantes do STF, em sua maioria, já responsabilizavam Ibaneis e Anderson Torres.
Desde o início da baderna na Esplanada, o então governador passou a ser procurado por diversos ministros da gestão Lula e demorou a ser encontrado. Nesse meio tempo, eles acionaram o chefe da Casa Civil do Distrito Federal, Gustavo Rocha, para que houvesse reforço da segurança da Esplanada.
O governador afastado contesta essa versão, alegando ter atendido aos telefonemas assim que procurado.
Àquela altura, a pressão por uma medida dura contra o governador já estava forte, mas aumentou após a corte ser alvo de vândalos.
Inicialmente, integrantes do Supremo defendiam a prisão de Ibaneis. Os ministros o haviam alertado sem sucesso para não nomear Torres no cargo de Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal.
Magistrados do Supremo avaliaram que, ao colocá-lo no governo, Ibaneis deu carta branca para que as forças de segurança locais apoiassem Bolsonaro.
Ainda no meio da tarde, uma ala do Supremo avaliou que não havia ainda elementos para a prisão de Ibaneis. A partir daí, passaram a discutir uma saída que contemplasse o afastamento do governador.
Por volta de 15h45, Dino apresentou a Lula três opções de ações: deixar o gerenciamento da crise com a Polícia do DF, instaurar uma GLO (Garantia de Lei e Ordem) ou realizar uma intervenção, parcial ou total.
De acordo com relatos de quem esteve no gabinete de crise na pasta da Justiça, integrantes do STF chegaram a defender a intervenção total no GDF para que Ibaneis fosse afastado, mas a conclusão foi a de que, nesse caso, Lula ficaria impossibilitado de editar medidas provisórias, entre outras implicações jurídicas, legislativas e políticas.
Do decreto por WhatsApp ao fim do acampamento Reunido com comandantes militares, por volta das 16h, Múcio informou a Lula que haveria 2.500 homens à disposição em caso de GLO. Mas a ideia foi rechaçada.
Diante das avaliações política e jurídica, Lula optou pela intervenção parcial na Secretaria de Segurança Pública. A partir daí, a minuta do decreto foi redigida, enviada via WhatsApp a Lula, que imprimiu o documento na Prefeitura de Araraquara, assinou à mão, tirou uma fotografia e enviou de volta a Dino.
Após a chegada dos ministros do governo no Ministério da Justiça, a então vice-governadora do Distrito Federal, Celina Leão (PP), também foi para o local, com o chefe da Casa Civil do GDF. Ela havia sido acionada no início das invasões pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
O clima no ministério era o mais tenso possível, segundo relatos de quem esteve presente.
Coube a Dino e Padilha avisarem o governador que o decreto da intervenção na segurança seria publicado. Após o anúncio a respeito da medida, feito por Lula por volta das 18h, Ibaneis solicitou que Celina deixasse o Ministério da Justiça e retornasse ao GDF.
Horas mais tarde, no início da madrugada de segunda (9), o ministro do STF Alexandre de Moraes determinou o afastamento de Ibaneis do governo por 90 dias.
Moraes consultou praticamente todos os colegas antes de dar a decisão, que foi referendada por oito ministros --só votaram contra André Mendonça e Kassio Nunes Marques, indicados à corte por Bolsonaro.
Em outra frente, as divergências na equipe de Lula afloraram já na noite de domingo, quando Múcio foi questionado por seus pares sobre a permanência dos bolsonaristas no acampamento. Com apoio de Dino, o interventor Ricardo Cappelli defendeu a retirada dos acampados ainda na noite de domingo, o que gerou resistência do Exército.
Múcio, por sua vez, defendeu que só fossem retirados na manhã seguinte, tese que acabou prevalecendo.
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