SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), desenha-se o cenário de que órgãos do Executivo devem atuar de modo pró-ativo e inclusive judicialmente contra desinformação sobre políticas públicas.
Decisões sobre eventuais punições continuariam sendo atribuição do Judiciário. A novidade estaria, por exemplo, em uma atuação da AGU (Advocacia-Geral da União), órgão que representa o governo juridicamente, de ingressar com representações judiciais contra aqueles que veja como autores de conteúdos mentirosos.
A posição de especialistas consultados pela reportagem sobre essa atuação não foi consensual. A maior parte aponta que uma atuação, nesse sentido, por parte do governo pode abrir um precedente que represente risco à liberdade de expressão, diante da possibilidade de ser instrumentalizada para assédio judicial contra críticos e opositores.
Por outro lado, há quem entenda que frente a um contexto de lentidão e inércia da PGR (Procuradoria-Geral da União) e momento de grande instabilidade política e riscos à democracia, a adoção deste tipo de inovação seria adequada e proporcional.
Em decreto com a estrutura do novo governo, criou-se uma Procuradoria de Defesa da Democracia da AGU. Entre suas competências, foi incluída a representação judicial da União "em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas".
Ainda há uma série de indefinições sobre como a unidade atuará e qual será a sua estrutura. Também não há uma definição de quando ela começará efetivamente a funcionar. O decreto que criou a unidade entra em vigor no dia 24 de janeiro. Depois disso, será apresentada sua regulamentação interna, que ainda passará pela consulta pública. Só então a Procuradoria de Defesa da Democracia iniciará seus trabalhos.
Em entrevista à Folha de S.Paulo publicada nesta quinta (19), o ministro-chefe da Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência), Paulo Pimenta, afirmou que fake news acusando o governo de ter cometido "fatos delituosos inverídicos" serão encaminhadas para a AGU e para o Ministério da Justiça, para que as pessoas que produziram a desinformação sejam identificadas e respondam por isso.
"O que nós vamos fazer é identificar o que for mentira, responder e encaminhar. Dependendo do caso, se for um crime, para o MP, se for desinformação, para a AGU, se for uma informação equivocada, vamos tomar a medida que for necessária", afirmou.
O ministro também respondeu sobre quem determinaria se a postagem é ou não desinformação, afirmando que trataria apenas de fatos objetivos e não de conteúdo político ou ideológico. "Vamos pegar um exemplo: circulou uma fake news dizendo que Lula sancionou uma lei que aumenta auxílio reclusão para R$ 1.764. Isso é mentira, não existe essa lei", explicou.
De modo geral, os especialistas ouvidos pela reportagem apontaram que, no caso de conteúdos online identificados serem crimes, a provocação ao Judiciário dependeria do Ministério Público. Ou seja, a AGU não poderia apresentar uma denúncia diretamente em juízo, mas poderia remeter os dados ao Ministério Público ?que inclui a PGR?, a quem competiria então apresentar uma denúncia ao Judiciário.
É a partir da aceitação da denúncia que é iniciada uma ação penal e um investigado passa a ser considerado réu.
"Ela [AGU] não pode nem abrir inquérito, nem apresentar denúncia, nem cumprir o papel de promotor durante um processo criminal", diz Francisco Brito Cruz, doutor em direito e diretor-executivo do InternetLab. "Ela pode fazer o que um advogado pode fazer pelo seu cliente, no caso o cliente é a União."
Paulo Rená, doutorando em direito na UnB, com pesquisa sobre regulação de políticas públicas de direito e tecnologia, aponta o que vê como uma exceção. "No caso de agentes públicos praticando desinformação, está em análise no STF se a AGU também poderia propor ações de improbidade administrativa ou se seria atribuição exclusiva do MP."
Flávia Lefèvre, advogada especialista em direitos digitais, por outro lado, tem o entendimento de que também é possível que a AGU, por meio de suas Procuradorias, apresente denúncia penal de modo mais abrangente. Isso porque, frisa ela, na lei orgânica sobre o órgão, não fica especificada essa limitação. "Portanto, eu entendo que pode ser tanto matéria civil como matéria penal."
No caso de ações da esfera civil, o entendimento geral é de que, em tese, a AGU poderia fazer uma representação diretamente ao Judiciário, a quem caberia decidir se o pedido tem ou não cabimento. Nesse caso, há um debate sobre os riscos que essa atuação no âmbito do combate à chamada desinformação pode gerar.
Apesar de o item do decreto que criou a Procuradoria de Defesa da Democracia da AGU dizer que ela tem atribuição sobre demandas envolvendo "desinformação sobre políticas públicas", essas representações devem ter outro tipo de embasamento jurídico ?o que poderia abranger, por exemplo, pedidos de indenização por danos morais, retratação ou remoção de conteúdo.
Brito Cruz avalia que será preciso analisar caso a caso e vê com dificuldade a possibilidade de argumentar que exista dano moral pelo Estado. Ele aponta ainda que uma definição de desinformação pela AGU não serviria como um parâmetro legal para julgamento do Judiciário, mas como de uso interno do órgão do governo.
Yasmin Curzi, professora de direitos humanos e pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio, considera que o plano representa risco para a proteção da liberdade de expressão, tanto por ser vago como por fazer menção a desinformação, dado que atualmente não há definição na lei do que isso seria. Ela considera que a AGU deveria ter, neste tema, um papel restrito de assessoramento e de orientação.
"Não pode processar as pessoas por compreenderem mal determinada notícia, isso é limitar a liberdade de expressão de forma bastante abusiva", avalia. "Não acho que seja essa a intenção verdadeira da AGU, mas abre caminhos e possibilidades para que outros governos e agentes mal-intencionados possam fazer isso", diz.
Flávia Lefèvre concorda com a ponderação de que este caminho pode reverter em medidas autoritárias, mas considera que o país está passando por um momento excepcional, dados os riscos à democracia, e que por isso a medida é proporcional.
"Isso são medidas a curto prazo, para agir agora com o que a gente tem na mão, É óbvio que a longo prazo, o ideal é a gente ter uma legislação específica", diz ela, que critica a não aprovação do chamado PL das Fake News no ano passado.
Rená considera que o assédio judicial com tal atuação é um risco possível, ele porém considera que a falta de punição a quem produz e propaga desinformação é mais preocupante no cenário atual. "Na nossa experiência jurídica brasileira recente, o dano da omissão do poder público em defender formalmente as instituições tem me parecido um problema mais grave."
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