SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não conseguiu reverter até aqui o azedume do meio evangélico com sua figura. Pesquisa Datafolha feita no apagar do seu primeiro trimestre no novo mandato detectou abismos persistentes na forma como os dois maiores blocos religiosos do país, católico e evangélico, veem o petista.
A porção de crentes que define a atual gestão como ótima ou boa é de 28%, bem abaixo dos 45% de seguidores do papa Francisco que a aprovam. A média, na população geral, é de 38%.
Já os evangélicos que acham o governo ruim ou péssimo somam 35%, dez pontos percentuais a mais do que no estrato católico.
A polarização que rachou o eleitorado no ano passado ainda causa estragos na popularidade de Lula nas igrejas evangélicas, com apenas 21% de seus fiéis se dizendo esperançosos de que o presidente cumprirá a maioria das promessas feitas no pleito. A fatia confiante, no catolicismo, é mais generosa: 32%.
A base de apoio a Jair Bolsonaro (PL) nos templos, por outro lado, não minguou. Um exemplo é a reação do segmento à possibilidade de uma ação tornar o ex-presidente inelegível, se condenado por atacar sem provas as urnas eletrônicas.
Metade da população diz que, sim, a Justiça Eleitoral deveria enquadrá-lo. Já os crentes que concordam com isso totalizam 39%, enquanto 58% desejam vê-lo inocentado. Católicos nutrem menos simpatia pela hipótese: 56% querem Bolsonaro vetado nas próximas eleições, contra 39% que preferem sua absolvição.
Também é mais misericordiosa a visão que evangélicos têm da parcela de culpa que cabe ao antecessor de Lula na depredação em Brasília no 8 de janeiro. Não creditam a Bolsonaro qualquer responsabilidade pelos ataques 46% do grupo. Pensam igual 37% dos subordinados ao Vaticano.
Estamos falando dos dois maiores estratos religiosos do Brasil, que juntos correspondem a 73% dos 2.028 entrevistados pelo Datafolha em 126 cidades, nos dias 29 e 30 de março. Evangélicos formam 27% da amostra, e católicos, 46%. A margem de erro é de quatro pontos percentuais, para mais ou para menos, no caso dos primeiros, e de três pontos para o segundo bloco.
O levantamento também mediu o quão afeita ao petismo ou ao bolsonarismo a pessoa se considera, a partir de uma escala de 1 a 5 --1 sendo bolsonarista, 2, mais próximo do ex-presidente, 3, neutro, 4, mais alinhado ao PT e 5, petista.
No cômputo geral, 30% da população se declara petista, e 22%, bolsonarista. Quando levamos em conta apenas evangélicos, 29% se encontram no bolsonarismo versus 23% que optam pelo petismo -ponderando as margens de erro específicas, um cenário de empate.
Entre católicos fica assim: 19% estão engajados nos valores simbolizados pelo ex-presidente, enquanto 36% se dizem fiéis ao partido de Lula.
O renitente apego a Bolsonaro e tudo o que ele representa é em parte explicado por uma retórica do pânico ainda muito popular nos púlpitos, diz a antropóloga Lívia Reis, do Iser (Instituto de Estudos da Religião).
"Ainda que, logo após as eleições, lideranças religiosas midiáticas tenham prometido orar pelo presidente eleito, isso não significou trégua. Nas igrejas e na internet, acusações de corrupção e perseguição à fé cristã ainda são pauta."
Aposta-se, portanto, "na mobilização pelo medo e na narrativa que aponta a incompetência de Lula e de quem ele escolheu para compor o governo".
Para Reis, o pressuposto de que a tradicional família brasileira e o próprio cristianismo estão sob ameaça nos anos Lula revela como a disputa narrativa será conduzida nos próximos anos: no campo da cultura. "Criminalização do funk e críticas ainda mais ferozes à discussão de gênero voltaram a ocupar o centro do debate não só nas redes, mas também no Congresso."
O deputado federal Mario Frias (PL-SP), ela lembra, protocolou um projeto de lei que, em linha gerais, propõe criminalizar o gênero musical exportado pelas periferias. Na internet, influenciadores religiosos produzem vídeos que associam o funk ao aumento de casos de abuso sexual infantil.
O aborto, claro, não fica de fora das guerras culturais que encorajam embates entre o conservadorismo encarnado na liderança de Bolsonaro e o progressismo arvorado em Lula.
O cientista político Vinicius do Valle, diretor do Observatório Evangélico, destaca ainda o papel das fake news. Quinhão expressivo dos evangélicos, afinal, acostumou-se a se basear "nesse ecossistema informacional bolsonarista", hábito que não foi embora com as eleições. "Tem uma série de notícias falsas que circulam ali. Muita coisa relacionada à questão da segurança pública, papos sobre Lula soltando bandidos."
Empesteiam as redes, por exemplo, vídeos de supostos criminosos festejando enquanto fazem o "L", famosa deferência ao presidente.
Para Valle, o governo não tem conseguido trazer uma pauta direcionada a evangélicos, mas a falta de esforço seria atenuada por um ponto positivo: a tão propalada caça aos cristãos, como a fake news de que Lula fecharia igrejas, não aconteceu.
Se a economia prosperar, melhor ainda para a relação entre PT e evangélicos, uma camada composta sobretudo por mulheres negras e pobres, mais vulneráveis às oscilações econômicas.
Haveria margem, portanto, para uma conciliação com o segmento, que pode vir após o arrefecimento de ânimos eleitorais, afirma o cientista político. Pastores mais belicosos sempre existirão, e Silas Malafaia seria um exemplo pronto disso, mas boa parte dos líderes não é intransigente a Lula, diz.
Mas ainda é cedo. "Uma aproximação muito forte agora seria até estranho de ver, visto que houve campanha forte para que evangélicos demonizassem a esquerda."
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