BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - O julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para acabar com as emendas de relator ocorreu na pior janela temporal possível, na avaliação de Élida Graziane, professora da FGV-SP e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.

"O Supremo não teve inteligência política de pautar no momento em que poderiam ser feitas as correções adequadas", afirmou Graziane em entrevista.

Para ela, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que ainda não tinha tomado posse, não tinha poder para negociar com o Congresso, que conseguiu colocar R$ 9,8 bilhões das extintas emendas de relator -usadas como moeda de troca por Jair Bolsonaro (PL)- no caixa de ministérios do petista.

Como mostrou a Folha de S.Paulo, o Palácio do Planalto decidiu que a nova forma de direcionar dinheiro para congressistas irrigarem obras e projetos em suas bases eleitorais vai simular as emendas parlamentares.

Segundo a procuradora, é preciso aprimorar as regras desses repasses, inclusive os que não são oficialmente carimbados como emendas.

Ela avalia que, sem o STF e o TCU (Tribunal de Contas da União), o governo não irá conseguir mudar a "trajetória de alocação balconizada, opaca e pouco aderente ao planejamento de políticas públicas".

PERGUNTA - Qual é, na sua avaliação, o saldo após o julgamento do STF?

ÉLIDA GRAZIANE - A discussão teria surtido outro efeito se o Supremo tivesse julgado já em 2023 em vez de fazer isso no apagar das luzes de 2022. Foi ingênuo achar que o Executivo que ainda nem tinha tomado posse conseguiria fazer uma equação de poder orçamentário. Não conseguiu. São R$ 10 bilhões que continuam obedecendo à lógica do RP9 [emenda de relator], ainda que dentro do RP2 [orçamento próprio de ministérios]. O Supremo não teve inteligência política de pautar no momento em que poderiam ser feitas as correções adequadas.

Qual foi o resultado disso?

E. G. - Isso permitiu que o Congresso reacomodasse o espaço. Os parlamentares conseguiram fazer um sistema de vasos comunicantes, porque o Supremo pautou a matéria num momento em que não tinha uma liderança no Executivo, e o próprio presidente eleito ainda não tinha caneta para fazer nenhuma definição. Lula, embora até pudesse ter vetado a acomodação dentro do projeto de lei orçamentária, não tinha força para fazer isso.

Se na sua avaliação o momento do julgamento foi equivocado, qual teria sido ideal?

E. G. - Em 2023 mesmo. Porque aí, sim, o Poder Executivo, portanto, no início do mandato, mais forte, teria tido uma outra equação de diálogo com o Congresso. A janela temporal que o Supremo optou por decidir [sobre as emendas de relator] foi a pior possível. Era um governo [Bolsonaro] que estava saindo, sem ter sido reeleito, portanto, altamente desinteressado. Acabou se perdendo bônus de ter dito que era incondicional, de que era falho, de que não tinha planejamento, que não havia transparência adequada, porque ficou no final do mandato anterior e o atual governo, de uma certa forma, acabou tendo o constrangimento de aceitar um arranjo que foi feito.

O que seria diferente com o julgamento em 2023?

E. G. - A discussão poderia ser feita na LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias], que é o lugar adequado, em vez de deixar os parlamentares criarem uma regra. Do jeito que está é sempre "farinha pouca, meu pirão primeiro", e comprando kits de robótica para escolas que não têm nem água tratada.

A decisão do Supremo estaria sendo descumprida?

E. G. - Eu não posso afirmar categoricamente que está sendo totalmente descumprida, mas é um risco de descumprimento por causa da forma como se alterou a lei orçamentária no apagar das luzes do ano passado. [Ao realocar a verba para os ministérios] continua atendendo fora dos portais da transparência, e não consegue saber quem é o padrinho da alocação e também pela falta de planejamento das políticas públicas.

Qual sua avaliação de o governo Lula dar tratamento de emendas a um dinheiro que está no caixa dos ministérios?

E. G. - É da tônica da relação com o Congresso o governo liberar verba podendo discriminar entre os parlamentares da base de apoio e os parlamentares de oposição. Ao invés de ser uma alocação estritamente pessoal subjetiva da escolha do parlamentar, o governo teria que buscar dentro de um banco de projeto já concebido no planejamento. Haveria condição de aperfeiçoar o rito, se o Supremo tivesse pautado esse debate para fevereiro de 2023.

O governo Lula, embora pretenda manter algum instrumento de barganha, não quer incorrer no mesmo risco de denúncias como o governo anterior. É um custo político muito alto também ter várias bombas explodindo a respeito dessas emendas parlamentares. Então, o aprimoramento da execução dessas emendas seria de interesse do próprio Executivo.

A Folha de S.Paulo publicou reportagem mostrando que Lula quer se blindar de eventual corrupção envolvendo esses repasses.

E. G. - Isso. Até para distribuir o custo da responsabilização. Porque é muito fácil o parlamentar ter o bônus e não arcar com as consequências depois. O parlamentar quer ter todo o direito de alocar os recursos, de quase promover a execução orçamentária, mas não presta contas.

O governo Lula vai conseguir, em algum momento, retomar o poder que o Executivo tinha no Orçamento antes de o Congresso se fortalecer?

E. G. - Como o Congresso aprendeu que ele pode diretamente liberar as verbas discricionárias no Orçamento, o Executivo sozinho não consegue se contrapor ao Congresso. Ele precisa que os órgãos de controle, especialmente o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Contas da União, façam os constrangimentos necessários para aprimorar a metodologia de execução das emendas parlamentares. Sem isso, nós vamos manter essa trajetória de alocação balconizada, opaca e pouco aderente ao planejamento de políticas públicas.

O que seriam esses constrangimentos? Decisões sobre transparência e melhor uso dos recursos públicos?

E. G. - Isso, e conformidade com o planejamento e vedando a possibilidade de escolha de CNPJ. Não adianta o Supremo achar que depois de pautar e julgar está resolvido. O Congresso se rearranjou. E o Executivo não tem força sozinho para corrigir as distorções.

O que precisa ser feito?

E. G. - Precisamos aprimorar o regime jurídico das alocações orçamentárias feitas por parlamentares, e não mais apenas emendas. Assim você engloba emendas diretamente, mas também essas indicações implícitas nas RP2 [orçamento próprio dos ministérios]. Os parlamentares tentaram manter a estratégia do que era tão bem-sucedido para eles. Foi uma costura de bastidores do que foi decidido em relação às emendas de relator.

Nos últimos anos, vimos Executivos enfraquecidos e um Congresso que se habituou a ter poder de alocar recursos no Orçamento, de forma não planejada. E o mais grave: o Congresso podendo até escolher o CNPJ das empresas jurídicas beneficiadas por emendas. Isso potencializou muito risco de captura fisiológica dos recursos públicos.

RAIO-X | Élida Graziane, 44

Professora de administração pública da EAESP-FGV (Fundação Getúlio Vargas) e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, titular da 2ª Procuradoria de Contas. É especialista na área de direito e finanças públicas.


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