BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - No dia 24 de janeiro, a primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja, foi surpreendida pela inexistência de cargo reservado a ela na estrutura então recém-desenhada para a Presidência da República.

De Buenos Aires, onde integrava a comitiva presidencial na Argentina, Janja telefonou para o Brasil e questionou integrantes do governo sobre essa ausência de função dentro do gabinete do marido.

De volta a Brasília, a primeira-dama cobrou explicações, segundo relatos obtidos pela reportagem.

Consultados informalmente sobre a viabilidade legal, auxiliares do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apresentaram ressalvas à designação de um cargo para Janja sob pena de ser caracterizado como nepotismo.

Ainda durante o período de transição do governo, houve discussão a respeito da equipe que apoiaria Janja e também de aspectos jurídicos sobre a criação de um cargo. Mesmo que sem remuneração, a criação de uma secretaria especial com uma equipe subordinada ela ?como chegou a ser aventado? poderia exigir a aprovação de um projeto no Congresso Nacional.

Não à toa, a MP (medida provisória) que foi enviada ao Parlamento em 1º de janeiro não previa nenhum posto específico para a primeira-dama.

A interlocutores, Janja confessou sua contrariedade, perguntando se teria que rasgar a certidão de casamento para exercer uma atividade política no Brasil.

Em fevereiro, na antessala de Lula, ela abordou o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, para contestar as restrições impostas à criação dessa função. Também segundo relatos, Costa lembrou ser economista e disse que o ministro da Justiça, Flávio Dino, que estava sentado ao seu lado, é quem entenderia de assunto.

Na contramão da avaliação dos colegas de Esplanada, Dino opinou a favor da redação de um decreto permitindo que ela exerça um trabalho voluntário, dentro da Presidência. O ministro da Justiça chegou a apresentar um estudo à primeira-dama.

Em março, foi divulgada a informação de que Janja comandaria um gabinete de Ações Estratégicas em Políticas Públicas. A primeira-dama publicou nas redes sociais uma foto com a ministra Esther Dweck (Gestão) e dizia na legenda que o encontro serviu para "encaminhamentos sobre a criação" do gabinete.

Com o aval jurídico de Dino, Dweck esboçou um desenho de estrutura em que o gabinete de Janja ficaria atrelado ao gabinete pessoal de Lula e haveria remanejamento de cargos, ou seja, não seria criado nenhum novo posto do ponto de vista orçamentário.

Porém, segundo relatos de quem acompanha o assunto de perto, integrantes da Casa Civil e AGU (Advocacia Geral da União) disseram a Lula que, mesmo que a primeira-dama não recebesse salário, o fato de ser nomeada para uma estrutura do Palácio do Planalto, faria dela, na prática, uma funcionária pública.

Isso significa que ela ficaria exposta e sujeita a investigação por parte de órgãos de controle, como TCU (Tribunal de Contas da União), CGU (Controladoria Geral da União), da própria Justiça ?sem ter foro privilegiado?, além de poder ser convocada para falar no Congresso.

Segundo aliados, estes foram os argumentos que levaram Lula, há cerca de 15 dias, a suspender, mesmo que temporariamente, o plano de criar o gabinete para a mulher.

O temor do presidente é o de que adversários usem a figura da primeira-dama para atingi-lo, num momento em que o Congresso abre uma série de CPIs que podem mirar ações do governo.

Além disso, há o receio por parte de Lula de que a mulher fique excessivamente exposta e se torne alvo de investigações judiciais.

Mesmo sem definição, Janja desempenha papel decisivo no governo Lula. De Pequim, falou diretamente com o ministro-chefe da Secom, Paulo Pimenta, sobre o impacto da taxação dos importados.

Durante a sua conversa com o ministro, Lula passou o telefone para a mulher, recomendando que ela fosse ouvida sobre a incidência de imposto. Segundo relatos, Janja alegou que a medida afetaria o eleitorado do presidente, entre eles pobres e influenciadores.

Na quarta-feira (19), a reportagem encaminhou à Secom perguntas sobre a formatação dessa estrutura, incluindo seus aspectos legais, mas não obteve resposta.

Especialista em direito administrativo, Marilene Matos afirma que, aplicada ao pé da letra, a legislação vedaria a participação de Janja em reuniões técnicas sem que ela ocupe função formal.

Segundo a advogada, a súmula vinculante do STF (Supremo Tribunal Federal) que define a prática de nepotismo não se aplica à nomeação para cargos de natureza política. A não remuneração também afastaria essa tipificação.

Marilene Matos afirma ainda que, na administração pública, novas estruturas não são criadas por decreto. Dependem de aprovação no Congresso Nacional, como é o caso da medida provisória que estabelece a nova configuração da Esplanada dos Ministérios.

Mas gabinetes podem ser formatados com o remanejamento de assessores de dentro da estrutura pré-existente. Ela ressalta que, para além da legislação específica, existem os princípios que regem a administração pública, como os da eficiência, impessoalidade e moralidade.

"O poder do presidente não é ilimitado", afirma.

Mariana Chiesa, doutora em direito do estado pela USP e professora da FGV, afirma que a legislação e o entendimento do STF afastam a incidência de nepotismo em cargos ou funções não remunerados.

Segundo ela, "há um reconhecimento generalizado da relevância social e política inerente à posição da pessoa casada com o chefe do Poder Executivo, a qual decorre da simples associação à figura presencial, e da desejabilidade da função cívica que pode estar associada a ela".

Por isso, defende que, em vez de simplesmente buscar negar esse papel, seja feita a regulação mais clara desta função.

"A não previsão de remuneração afasta o nepotismo (no formato previsto hoje) e muitos problemas de conflito de interesses. Mas é possível discutir outros aspectos, por exemplo, os limites que devem ser observados no exercício dessa função (que pode ser esvaziada de poder decisório)", afirma.

A advogada afirma que seria importante o debate em torno desse formato de representação sem remuneração da primeira-dama no contexto contemporâneo, "já que ela teria diversos impedimentos para exercer outras atividades econômicas de forma autônoma".


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