SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O presidente Lula (PT) comete equívocos na relação com o Congresso, num cenário que já é naturalmente mais difícil do que em outros governos, e precisa fazer ajustes de articulação, afirmaram os cientistas políticos Carlos Pereira e Beatriz Rey na TV Folha nesta sexta-feira (2).

Diante da dificuldade governista de aprovar medidas por prescindir de uma base na Câmara e no Senado, ambos sugeriram que o presidente repense a coalizão de apoio, mas disseram que o presidencialismo de coalizão não morreu, como provocava o tema do debate mediado pelo repórter da Folha de S.Paulo Ranier Bragon.

O termo, cunhado pelo sociólogo Sérgio Abranches, diz respeito a uma tradição no presidencialismo brasileiro em que o chefe do Executivo se elege sem maioria parlamentar e tem de formá-la a partir de negociações, distribuindo cargos e verbas.

Pereira, que é professor da FGV, e Beatriz, que tem pós-doutorado na Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e é pesquisadora da Fundação POPVOX, concordaram no diagnóstico de que Lula erra ao privilegiar o PT na nomeação de ministérios e postos-chaves.

A situação se complica pelo fato de o presidente ter unido em torno de si 14 partidos que formam um painel heterogêneo, com siglas desde a esquerda até a direita. Para completar, o Congresso empoderado e majoritariamente divergente não se dobra com facilidade ao Planalto.

"Quando o presidente monta coalizões muito grandes, com partidos heterogêneos, sem compartilhar poderes e recursos de forma proporcional ao peso político de cada um, e quando essa coalizão é muito distante do que o Congresso deseja, então ele necessariamente está no inferno", disse Pereira.

"Talvez por isso que o presidencialismo de coalizão, sob Lula, possa parecer morto. Porque ele fez todas essas quatro escolhas equivocadas", acrescentou ele, comentando que Lula "está pagando o preço" por gerenciar mal sua coalizão e concentrar muito poder na mão do PT.

Para o professor, as derrotas do governo nos últimos dias vão se suceder se não ocorrerem ajustes. Com uma correção de rumos, segundo ele, Lula estará em condições de ter mais sucesso legislativo sem ter um custo muito alto, com emendas e cargos, mas não significa que "vai estar no paraíso".

Beatriz disse ter diagnóstico parecido, mas relatou não saber se os ajustes serão suficientes. Ela sugeriu, por exemplo, uma aproximação do governo com o Republicanos, visto que o partido tem dado uma proporção alta de votos favoráveis, o que justificaria sua incorporação à base.

Em outro momento, citou a União Brasil como exemplo de partido que dá mais dores de cabeça do que vantagens. Para ela, a composição mista da legenda (fruto da fusão entre DEM e PSL) e a existência de divergências com a linha do Planalto tornam o aliado um potencial foco de problemas.

Beatriz disse considerar o sistema partidário brasileiro em transformação, num momento em que o número de legendas está se reduzindo e, consequentemente, cai a fragmentação no Congresso. Também lembrou o fato de as bancadas conservadoras terem ganhado espaço.

"O governo ainda não deixou clara sua agenda prioritária, o que complica tudo", observou a pesquisadora, ecoando críticas já feitas pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Os debatedores apontaram as mudanças feitas nos últimos anos nos mecanismos de liberação de emendas como um entrave extra. Para eles, o presidente da República perdeu a capacidade de beneficiar aliados e punir opositores com as verbas, depois de alterações constitucionais que tornaram o pagamento impositivo (obrigatório) e fixaram critérios e valores semelhantes para todos os parlamentares.

As chamadas emendas de relator tumultuaram ainda mais o ambiente, concentrando no Parlamento um poder inédito sobre a destinação de recursos para bases eleitorais. O "momento singular" da conjuntura, após mudanças políticas e partidárias, foi citado como entrave para as costuras.

Beatriz avaliou que o governo precisa levar em conta esse arsenal de condições restritivas, que são novas. "Lula tem menos ferramentas para lidar com um Congresso com mais poder", disse. "Não existem as mesmas condições do passado e, dentro dessas condições piores, o governo ainda está errando."

Para ela, "o preço dos deputados", com a exigência de emendas, só vai aumentar se forem mantidas as atuais condições, o que "é insustentável no longo prazo".

Pereira destacou o papel de Lira, afirmando que ele "foi alçado à condição de todo-poderoso" no governo de Jair Bolsonaro (PL) e perdeu poder com a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de dezembro que proibiu as emendas de relator. A corte considerou essa modalidade inconstitucional.

Para o cientista político, Lira tenta emparedar o governo em um esforço para recuperar a discricionariedade sobre as emendas. "Ele quer recuperar esse poder. Essa chantagem do Lira nada mais é do que uma tentativa de resgatar um poder que ele perdeu", afirmou.

Os convidados comentaram que um primeiro passo para melhorar o ambiente poderia ser Lula redimensionar o papel de sua própria agremiação, ao mesmo tempo que os aliados do presidente à esquerda devem reduzir as expectativas sobre a implementação de uma agenda progressista.

"Na minha opinião, a grande restrição de Lula se chama Partido dos Trabalhadores", afirmou Pereira, ao falr que é um erro o presidente querer contemplar correntes internas da sigla, que também vivem em choque, em vez de atender aos interesses de partidos que podem ajudá-lo no Congresso.

"Quando privilegia um dos parceiros em detrimento dos demais, isso gera animosidades, inveja, ressentimento e problemas de toda sorte. E isso vai complicando o jogo."

Beatriz se disse surpresa com a dificuldade enfrentada por Lula, por ter imaginado que "o governo teria mais habilidade de articulação", mesmo com uma oposição significativa. Num quadro tão pedregoso, opinou ela, "não dá para se ter a ilusão, por parte do PT, de que se vai aprovar política pública mais à esquerda com o atual Congresso".

Lula afirmou nesta sexta-feira (2) que, como sua base de apoio no Congresso é insuficiente para a aprovação de projeto, o governo precisa conversar com adversários para conquistar votos.

"É preciso que vocês saibam o esforço para governar. Não é só ganhar eleição", disse a uma plateia de estudantes na Universidade Federal do ABC, em São Bernardo do Campo (na região metropolitana de São Paulo).

"Precisa passar o tempo inteiro conversando para aprovar uma coisa. Tem que conversar com quem não gosta da gente, com quem não votou da gente", completou.

Lula venceu o pleito contra Bolsonaro por estreita margem de votos ao mesmo tempo em que os eleitores escolheram um Congresso majoritariamente conservador.

A base da esquerda, liderada pelo PT, controla apenas cerca de 130 das 513 cadeiras na Câmara.


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