SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Antes de começar a liberar os R$ 9,9 bilhões que herdou das emendas de relator, o governo Lula (PT) criou regras de controle, editou atos internos, fez lives com prefeituras, desenvolveu sistemas para receber propostas do Brasil todo, mas, na prática, tem distribuído o dinheiro na base de acordos políticos.

Mais de 45 mil projetos foram cadastrados por municípios em apenas dois ministérios: o da Saúde (ao menos 37 mil propostas) e o da Agricultura (8 mil).

No entanto os repasses autorizados pelo governo seguem privilegiando aliados do Palácio do Planalto e da cúpula do Congresso, especialmente do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Durante a campanha eleitoral e após tomar posse Lula tem repetido que não olha a filiação partidária de deputados, senadores e governadores para repasse de verba e proposição de parcerias federais.

É na Câmara dos Deputados onde o governo tem enfrentado maior resistência a projetos de interesse de Lula. As primeiras liberações também atenderam a demandas de ministros.

De R$ 250 milhões empenhados pelo Ministério da Agricultura, mais de R$ 130 milhões foram para projetos em Mato Grosso, reduto eleitoral de Carlos Fávaro (PSD).

Enquanto todos os R$ 50 milhões destravados pelo Ministério das Cidades serviram para uma obra em Belém (PA), onde a família do titular da pasta, Jader Filho, tem longa carreira política.

Procuradas, as pastas da Saúde, Agricultura e Cidades não responderam se houve participação do Palácio do Planalto ou de parlamentares para a seleção das propostas que receberam repasses.

Como mostrou a Folha de S.Paulo, o Ministério da Saúde passou, neste mês, a autorizar repasses dessa verba para bases de parlamentares, principalmente deputados. Os pedidos foram destravados e levaram em consideração uma lista de demandas apresentada por articuladores de Lira ao Palácio do Planalto.

Após pressão do centrão, o Ministério da Saúde liberou R$ 465 milhões do recurso, sendo que mais de R$ 105 milhões foram direcionados a Alagoas, estado que tem Lira como uma das lideranças políticas, além do líder do MDB na Câmara, Isnaldo Bulhões.

No total, a Saúde tem R$ 3 bilhões dos R$ 9,9 bilhões que foram rebatizados após o fim das emendas de relator ?principal moeda de troca usada no governo de Jair Bolsonaro (PL) com o Congresso.

A decisão de priorizar aliados do governo e de Lira contraria normas editadas pelo próprio governo sobre a divisão do recurso herdado das emendas de relator.

Em portaria publicada em maio, a SRI (Secretaria de Relações Institucionais), pasta responsável pela articulação política do governo, determinou que fosse aberta uma seleção de propostas, com análise técnica e divulgação do resultado da escolha.

Os ministérios que já liberaram recursos, porém, ainda não informaram como foi feita a seleção.

Antes de começar a liberar a verba, a Saúde também havia determinado regras para seleção das propostas. O grupo de parlamentares liderados Lira tornou a pasta alvo após a equipe de Nísia Trindade criar regras para ampliar o controle na liberação de emendas parlamentares.

A pressão do Congresso foi feita para que o recurso, na gestão Lula, fosse liberado como uma emenda, ou seja, conforme acordos feitos com o Planalto para aumentar a base do governo, ainda que o STF (Supremo Tribunal Federal) tenha proibido essa forma de negociação sem a devida transparência.

A pasta de Nísia abriu prazo até 30 de junho para receber propostas de estados e municípios e listou prioridades de uso da verba. O objetivo era controlar o destino dos R$ 3 bilhões e estimular investimentos como construção de unidades de atendimento, compra de equipamentos médicos e renovação da frota do Samu.

Congressistas afirmavam então que, além de divergências sobre as prioridades definidas pela Saúde, o processo de cadastro e seleção de projetos atrasa a liberação do dinheiro.

O ministério, pressionado pela ala política do governo e pelo Congresso, começou a liberar os repasses antes mesmo do fim do prazo das propostas.

Ao todo, sete ministérios receberam recursos que eram das emendas de relator. No total, empenharam (etapa que antecede o pagamento) R$ 800 milhões dos R$ 9,9 bilhões que migraram para o caixa do governo após o STF declarar a emenda de relator inconstitucional.

Na Saúde, a seleção das propostas gerou dúvidas em gestores de estados e municípios. O Ministério da Saúde tentou explicar os procedimentos em ao menos cinco transmissões feitas nas redes sociais com mais de uma hora de duração cada uma delas.

A equipe de Nísia avalia que, nos últimos anos, o dinheiro das emendas foi excessivamente destinado ao custeio. Ainda que nessa modalidade seja mais fácil de gastar a verba, o governo considera que é preciso reforçar investimentos e reduzir desigualdades regionais.

Por causa das dúvidas e dificuldade técnica de cadastro de propostas, a pasta prorrogou o fim do prazo de funcionamento do sistema, que se encerrou na sexta-feira (30). A Saúde informou na quarta-feira (28) que havia recebido 37 mil propostas.

Há algum tempo, líderes do centrão militam nos bastidores pela troca de Nísia por alguém ligado ao grupo, mas Lula tem resistido até o momento. Em público, o centrão nega querer a vaga da ministra, afirmando que o que cobra é agilidade na liberação dos recursos aos entes federados.

Em nota, a Saúde afirma que mantém diálogo com o Congresso e gestores do SUS, "tendo a ministra da Saúde, Nísia Trindade, se reunido com 277 parlamentares, governadores, prefeitos e vários representantes de entidades filantrópicas desde o início da gestão".

A pasta afirma que um terço das propostas recebidas tratam de investimentos, enquanto o resto propõe medidas de "assistência emergencial para custeio de ações e serviços de saúde".

Na gestão Bolsonaro não havia uma seleção de propostas para partilha desse tipo de emenda ?a verba era distribuída por indicações feitas pelo relator do Orçamento, após acordos feitos entre a cúpula do Congresso e o Planalto.

Na prática, uma parcela de parlamentares ganhava o poder de indicar valores acima das cotas de emendas individuais.

Sob Lula, a cobiça maior dos parlamentares é pelos recursos que o governo herdou das emendas de relator, pois isso permite que eles enviem mais dinheiro para suas bases eleitorais.

O governo começou a destravar a verba herdada das emendas de relator, mas descumpriu a promessa de dar transparência sobre os recursos.

Durante a campanha eleitoral, Lula chegou a chamar as emendas de relator de o "maior esquema de corrupção da atualidade", "orçamento secreto" e "bolsolão". A gestão petista, porém, driblou a decisão do Supremo e negociou a partilha desse recurso a partir de acordos feitos com o Congresso para ampliar sua base de apoio.


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