BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - A fala que se tornou o estopim da demissão do número 2 da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Alessandro Moretti, não é atribuída diretamente a ele na transcrição do depoimento do servidor da agência que foi intimado a falar sobre o caso.
De acordo com relatório da Polícia Federal nas investigações do caso da chamada "Abin Paralela", Moretti teria dito em uma reunião com servidores da agência, em março do ano passado, que a investigação teria "um fundo político e iria passar".
A fala foi interpretada pela PF como indicativo de que a atual gestão estaria com o intuito de embaraçar as investigações.
Moretti foi demitido por ordem do presidente Lula (PT), cinco dias depois de trechos do texto da polícia virem a público por meio de reprodução na decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal).
A Folha teve acesso ao relatório policial e à transcrição do depoimento do servidor da Abin que participou da reunião.
Os dois documentos estão entre os principais indicativos apontados pela PF para afirmar ter havido tentativa de obstrução das investigações por parte da atual direção da agência de inteligência, comanda por Luiz Fernando Corrêa.
O inquérito foi aberto em março do ano passado após reportagem do jornal O Globo apontar a suspeita de que, durante a gestão Jair Bolsonaro (PL), a Abin usou o software espião FirstMile para monitorar ilegalmente adversários do governo.
Na ocasião, a PF requisitou da Abin a lista dos telefones monitorados ?o FirstMile permitia saber a localização aproximada de uma pessoa por meio das antenas de telefonia celular? e o nome dos servidores da Abin que usaram o software.
No decorrer das investigações, descobriu-se que nessa ocasião uma comissão de servidores da agência procurou para uma reunião a nova direção, parte dela já indicada, mas ainda não efetivada.
Integrantes da Abin afirmam, nos bastidores, que o objetivo era debater o temor de que os nomes de agentes e também de pessoas ligadas a eventuais operações sigilosas de inteligência viessem a público. Já a PF diz suspeitar que a reunião serviu para definição de estratégia para dificultar a investigação.
"As declarações do então diretor da Abin, Alessandro Moretti, em reunião com os investigados no
sentido de dizer que a presente investigação, em curso sob a relatoria do excelentíssimo ministro-relator, teria 'fundo político e iria passar' não é postura esperada de delegado de Polícia Federal", diz o relatório.
O texto policial é assinado pelo delegado titular do inquérito, Daniel Carvalho Brasil Nascimento.
A transcrição do depoimento do servidor que cita ter ouvido a frase sobre "fundo político", porém, não a atribui diretamente a Moretti, mas sim à "direção-geral".
No depoimento, a transcrição aponta que ele afirmou que "a direção-geral disse aos servidores que 'teria um fundo político e iria passar'" e que participaram da reunião Corrêa, já indicado por Lula para o cargo, mas cujo nome ainda não havia sido aprovado pelo Senado, Moretti, então diretor-adjunto, e Paulo Maurício Fortunado, que viria a ser o número 3 da nova composição da Abin.
O depoimento diz que Moretti conduziu a reunião e que Corrêa chegou no meio e a concluiu.
De acordo com a transcrição do depoimento do servidor da Abin, o objetivo era "entender o que estava acontecendo" em relação às investigações da PF.
O servidor prossegue afirmando que Moretti disse na reunião que se comprometia a avisá-los sobre o que fosse demandado pela PF, que os ajudaria e que "os servidores deveriam colaborar com as investigações".
Mais abaixo, o depoente é questionado sobre a elaboração na reunião de uma "estratégia" captada em mensagens apreendidas, mas ele diz que não era "uma estratégia no sentido de montar uma história" ou de "moldar o que as pessoas iriam dizer", mas sim uma reunião de boa-fé para acalmar os servidores, que estariam se sentindo desamparados.
A Folha procurou a PF, a Abin, Moretti e o agente que depôs aos policiais federais, mas apenas a agência respondeu, afirmando que continua colaborando com as investigações.
Outra ação da atual direção da Abin apontada pela PF como indicativo de tentativa de obstrução foi uma petição encaminhada a Moraes, também em março do ano passado, no sentido de pedir que as investigações sobre suspeita de uso ilegal do FirstMile se concentrassem no STF.
Além disso, a Abin solicitava que as empresas de telefonia fossem diligenciadas a informar a ela os dados cadastrais dos números de telefones alvos do software.
O objetivo disso, de acordo com a agência, era evitar que a lista com nomes de agentes da Abin vazasse e também facilitar a identificação dos telefones alvos do FirstMile.
A PF afirma estranhar essa petição, incluindo a citação feita pela Abin em um ofício de que sua direção havia ido ao gabinete de Moraes explicar mais detalhadamente os motivos dos pedidos feitos ao ministro.
"A aparente atecnia constante expressamente no ofício encaminhado pela direção geral da Abin pode indicar relevo probatório de condutas de embaraçamento da investigação de alta gravidade, posto que realizadas em manifestação direcionada ao excelentíssimo ministro-relator", diz o relatório.
Moraes negou o pedido relativo às empresas de telefonia, mas concordou com a solicitação da Abin para que as investigações fossem concentradas sob sua relatoria.
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