O sanitarista pernambucano Jarbas Barbosa assumiu, em janeiro, o cargo de diretor da Organização Panamericana de Saúde (Opas), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS) nas Américas. Entusiasta da saúde pública, ele sucede a médica Carissa Etienne, da Dominica, que liderava a organização desde 2012.

Eleito pelos Estados-membros da organização, em setembro do ano passado, Barbosa reforçou, em seu discurso de posse,

 o compromisso com a saúde pública para a construção de um mundo mais equitativo e com saúde universal para todos.

Durante os primeiros anos da pandemia de covid-19, quando era diretor assistente da organização, o brasileiro liderou os esforços da Opas para apoiar países das Américas na redução do impacto da emergência sanitária em programas prioritários de saúde pública.

O médico também encabeçou uma força-tarefa para a vacinação contra o vírus na região e lançou uma plataforma para expandir a produção de vacinas na América Latina e no Caribe, a fim de reduzir a dependência de importações em futuras emergências de saúde.

Jarbas Barbosa assumiu em janeiro o cargo de diretor da OPAS. O mandato é de cinco anos - OPAS-OMS/divulgação

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Da sede da Opas, em Washington, nos Estados Unidos, Barbosa conversou com a Agência Brasil, por ocasião dos três anos da pandemia de covid-19, declarada emergência em saúde pública mundial pela OMS no dia 11 de março de 2020, há exatos três anos.

Na entrevista, o sanitarista falou sobre ferramentas de combate à pandemia; desigualdades históricas entre países das Américas; fortalecimento da atenção primária como estratégia de saúde pública; lições aprendidas com a covid-19; e um futuro desafiador para a região, já que a próxima emergência sanitária pode estar à espreita.

Ele também tratou de temas como prioridades da organização, perspectivas e desafios de seu mandato, que vai até 2028.

Confira os principais trechos da entrevista:

Agência Brasil: A prioridade, neste primeiro momento à frente da Opas, é o combate à pandemia de covid-19?
Jarbas Barbosa: É uma das prioridades. Temos que trabalhar com os países da região para que terminemos a pandemia como emergência de saúde pública que causa tanto impacto. Estamos em um momento importante em que temos uma redução [de casos] em todos os países, de maneira geral. Temos um dos menores índices de transmissão desde o começo da pandemia.

Isso, no entanto, pode se alterar porque pode surgir uma nova variante. É preciso manter uma vigilância epidemiológica muito cuidadosa para identificar qualquer mudança no padrão, ou seja, se há um crescimento no número de casos, buscar identificar o que está ocorrendo, fortalecer a vigilância genômica para identificar uma nova variante e, principalmente, vacinar os que ainda não estão vacinados.

Campanhas de vacinação são fundamentais para reduzir casos graves de covid-19 - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Agência Brasil: Quais as principais estratégias e ferramentas a serem utilizadas nas Américas para o fim da pandemia?
Jarbas Barbosa: A vacinação é fundamental. As vacinas disponíveis hoje não impedem a transmissão. É uma característica dessas vacinas atuais, o que faz com que elas não sejam capazes de eliminar completamente a transmissão da doença. Isso leva muito pessoas a ter essa falsa impressão de que as vacinas não funcionam. Dizem: “Eu tomei a vacina e, seis meses depois, tive covid.”

A vacina não impede a transmissão, isso é verdade. Mas todos os dados acumulados – e já são praticamente dois anos de análise – mostram que elas têm uma capacidade importante de reduzir casos graves e mortes, o que, efetivamente, é com o que a gente mais se preocupa. Quem tem covid vacinado, geralmente, apresenta uma forma leve, que não é muito diferente de uma infecção respiratória.

Agência Brasil: Como o senhor avalia o atual cenário de covid-19 no Brasil?
Jarbas Barbosa: O Brasil, como outros países da América do Sul, vem tendo um período de diminuição da transmissão, desde dezembro. A grande preocupação é esse monitoramento diário das tendências: o que está ocorrendo, os casos hospitalares, os leitos de UTI.

Se a gente consegue identificar uma nova variante no começo, as autoridades sanitárias podem tomar medidas imediatas para fazer com que o impacto seja reduzido. Estamos em um momento, eu diria, muito melhor do que já estivemos desde que começou a pandemia, mas a pandemia ainda não acabou.

É preciso muita responsabilidade de todos com a vacinação e das autoridades sanitárias em manter essa vigilância epidemiológica, trabalhando de maneira sensível, rapidamente identificando qualquer alteração no padrão.

Durante a pandemia de covid-19, a telemedicina se tornou uma opção segura de atendimento em todo o mundo - Marcello Casal JrAgência Brasil

Agência Brasil: O sistema de saúde brasileiro dá sinais de que poderia sair da pandemia fortalecido?
Jarbas Barbosa: Acredito que sim. Durante a pandemia, em todos os países e também no Brasil, houve uma atenção muito grande para o setor da saúde. Nunca se falou tanto sobre saúde. O desafio agora é fazer com que essa maior atenção se traduza em um fortalecimento mais estrutural do sistema.

Temos uma janela de oportunidade em que nós precisamos responder a todas as fragilidades que a pandemia demonstrou que nossos sistemas de saúde têm. Seguramente, é o momento de rever e implantar estratégias que foram utilizadas durante a pandemia e que ajudaram a diminuir os impactos negativos, como um processo melhor de priorização e de agendamento, a utilização de teleconsultas e da telemedicina e, principalmente, o fortalecimento da atenção primária de saúde.

Agência Brasil: É possível aplicar as lições aprendidas com a pandemia para se preparar para futuras emergências sanitárias?
Jarbas Barbosa: É uma obrigação que nós temos. Não estávamos preparados adequadamente para uma pandemia como a de covid-19. Sempre pensávamos em cenários relacionados a pandemias de influenza, como o H1N1, que se espalha rapidamente, mas não produz tantos casos graves. Outros coronavírus, como SARS e MERS, produziram casos graves, mas não se espalharam com velocidade. A covid, infelizmente, reuniu essas duas características: o vírus se disseminava com uma velocidade tremenda e com uma capacidade de produzir casos graves que superava a infraestrutura [hospitalar] disponível.

Precisamos agora implementar as lições aprendidas. É importante que todos os países façam uma avaliação rigorosa do que funcionou bem durante a pandemia e do que não funcionou e precisa ser melhorado.

Agência Brasil: Há algum tipo de perspectiva de fim da pandemia ou vamos conviver com ela por mais tempo?
Jarbas Barbosa: São duas coisas diferentes: uma é pandemia, a outra é a emergência em saúde pública de importância internacional. Pandemia é quando temos uma epidemia que ocorre em muitas regiões do mundo ao mesmo tempo. Por exemplo, a epidemia de HIV está conosco desde os anos 80.

Outra coisa é ter uma pandemia que causa um impacto sanitário, social e econômico pesado, como causou e tem causado a covid. Apesar de estarmos em um momento de baixa transmissão, pode surgir uma nova variante amanhã. Enquanto tivermos nível de transmissão por um lado e cobertura vacinal incompleta por outro, acredito que a emergência deve ser mantida. Esperamos que essa tendência de redução continue, mas isso vai depender do esforço para conseguir vacinar, inclusive com o reforço, os não vacinados.

Manaus (AM) - Um trator é usado no Cemitério Tarumã na cidade de Manaus, para abrir covas coletivas para as vitimas do covid-19 . Foto:

 Alex Pazuello/Semcom/Prefeitura de Manaus

Agência Brasil: Qual a importância da chamada saúde universal em meio a esse contexto de surtos, epidemias e pandemias?
Jarbas Barbosa: É fundamental. Vimos isso claramente durante a pandemia, na diferença de mortalidade, de gravidade. Em um país onde as pessoas têm que pagar, mesmo que parcialmente, para serem internadas, elas demoram mais para ir ao hospital. É o que explica, por exemplo, a mortalidade bem maior entre os mais pobres quando comparada à de pessoas de classe média e de melhor renda em países da Europa, da Ásia e nos Estados Unidos.

Mesmo os sistemas universais têm barreiras. Algumas populações mais vulneráveis têm dificuldade de procurar os sistemas de saúde porque não são acolhidas de maneira adequada – o serviço é longe ou a pessoa não pode pagar pelo transporte. É preciso identificar, em cada país, as barreiras que existem para que os sistemas sejam efetivamente universais.

Agência Brasil: Como enfrentar as desigualdades históricas entre países das Américas e mesmo dentro de cada país da região?
Jarbas Barbosa: Essa, infelizmente, é uma das grandes características da nossa região. A própria covid ressaltou muito isso. Todos os estudos demonstram claramente que os mais pobres tiveram muito mais risco de adoecer e morrer porque vivem em uma situação quase que de aglomeração permanente nas favelas. Muita gente vivendo em casa pequena, sem ambientes arejados. Pessoas que tinham que usar sistemas públicos de saúde superlotados, sair de casa mesmo nas épocas de maior transmissão porque não tinham uma rede de proteção social. Temos lembrado muito aos países e trabalhado com eles para que possamos ter dados subnacionais, como a gente chama, porque, às vezes, a média [de casos e óbitos] do país não quer dizer nada. Ela, na verdade, esconde desigualdades tremendas.

Linha de produção de vacinas contra a covid-19 na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro - Fernando Brito/MS

Agência Brasil: Quais os principais desafios nas Américas para se garantir acesso rápido e equitativo às inovações em saúde?
Jarbas Barbosa: Temos alguns problemas já bem identificados. Primeiro, o subfinanciamento. Há um consenso entre quem estuda economia da saúde de que um sistema de saúde, para garantir acesso universal com qualidade, precisa de pelo menos 6% do Produto Interno Bruto [PIB - soma de todas as riquezas produzidas no país] como gasto público em saúde. Só temos quatro países da região, quase seis agora, que estão neste patamar. Todos os outros 29 estão abaixo disso.

[Segundo problema identificado] ainda dependemos muito de importação de insumos farmacêuticos, produtos, equipamentos. É muito importante reverter esse quadro e garantir mais capacidade de produção. Estamos trabalhando com os países com vacinas de RNA mensageiro, tecnologia usada pela Pfizer e pela Moderna. Temos dois projetos aprovados, um no Brasil, com Biomanguinhos e Fiocruz, e outro na Argentina.

Agência Brasil: A atenção primária à saúde deve ser o foco central dos sistemas de saúde na região?
Jarbas Barbosa: Não tenho dúvidas sobre isso. A atenção primária tem a capacidade de resolver mais de 80% dos problemas de saúde da população, está próxima da comunidade, consegue identificar os principais problemas de saúde e resolvê-los de uma maneira adequada.

Agora, para funcionar bem, ela precisa de dois movimentos importantes. Primeiro, revigorá-la: se a atenção primária não consegue identificar e controlar a hipertensão e o diabetes, ela não será efetiva. Também é muito importante que essa atenção primária esteja conectada e articulada com os serviços especializados. Ou as pessoas vão continuar preferindo ir à uma emergência e esperar de quatro a seis horas, mas sair com o raio-x, o ultrassom e os demais exames de que precisam, além de serem medicadas. A atenção primária precisa ser resolutiva.

Agência Brasil: Como especialista em saúde pública, o senhor defende uma reforma sanitária brasileira que tenha a saúde como direito universal?
Jarbas Barbosa: A reforma sanitária brasileira, que começou nos anos 1970, resultou em uma Constituição e, dentro dela, na Lei Orgânica da Saúde. Ter o direito à saúde inscrito na Constituição foi uma vitória importantíssima. O que cabe agora às autoridades sanitárias, ao Ministério da Saúde, às secretarias estaduais e municipais é continuar trabalhando para aperfeiçoar esse sistema. Isso envolve financiamento e regionalização.

Um município de 5 mil habitantes não vai fornecer um serviço de tratamento de câncer, por exemplo. Mas esse município precisa saber para onde os pacientes de câncer dele vão. São serviços que podem ser ofertados por grupos de municípios com a participação do estado. Isso poderia racionalizar o uso de recursos e oferecer mais serviços, além de reduzir barreiras.

Agência Brasil: Como a Opas se prepara para um futuro classificado por muitos especialistas em saúde como desafiador, permeado por emergências sanitárias à espreita?
Jarbas Barbosa: Se cada país não estiver melhor preparado, nenhum de nós estará seguro. Quando olhamos as pandemias recentes, há um mesmo comportamento: um vírus que circula entre animais e que faz mutações o tempo todo, completamente ao acaso.

O conceito de saúde única precisa ser implementado na prática, com um sistema de vigilância não só sobre doenças que ocorrem em pessoas, mas também sobre o que acontece em animais, com o objetivo de detectar o mais precocemente possível esse tipo de mudança. Um dos projetos da Opas consiste em fortalecer, em cada país da região, esse conceito da saúde única, fazendo com que a gente possa aumentar a nossa capacidade de predizer e detectar o mais rápido possível quando há uma nova emergência em saúde pública começando.

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