Andar com fé, eu vou
Embora filho de motorista, não possuo licença para dirigir e nem sei bem o porquê. Talvez, um misto de falta de grana dos anos de faculdade, somado a falta de tempo, depois de formar, já que o tempo é item escasso. Compondo os mil motivos para não ter tirado a CNH, tem a questão do propósito, já que nunca quis ter carro. E, claro, a falta de coordenação motora, que já me fez, ainda com duas rodas, cair de uma bicicleta parada, no inverno de 1991... No entanto, caro leitor, mais do que me justificar, digo tudo isso, porque sou pedestre. Pedestre daqueles natos...
Como narrei na minha coluna inaugural, andar de ônibus não é nada fácil. Mas, andar a pé, é andar com fé, já que "a fé não costuma falhar", como queria o nosso Gilberto Gil. E andar a pé no núcleo central de Juiz de Fora, tornou-se um exercício de fé dos mais ferrenhos. É necessária muita crença para atravessar nossas ruas, em uma disputa ainda não resolvida nem na nova e nem na boa e velha Manchester Mineira. De um lado do ringue, pesando menos de cinco arrobas, está o pedestre. Do outro, pesando um punhado de toneladas de lata, estão os automóveis. É o Davi contra o Golias atual e traduzido para a Zona da Mata de Minas Gerais.
A cada esquina, novas páginas deste embate ganham vida. Seja ao estacionar sobre uma faixa, furar um sinal ou andar acima dos limites de velocidade, batimentos cardíacos nunca antes registrados em minhas caminhadas foram sendo alcançados, tamanha a adrenalina ao dividir a via com nossos nobres condutores. Condutores estes devidamente habilitados pelo órgão responsável a dirigir automóveis e não carros de Fórmula-1, vale dizer. Porque está cheio de piloto perdido aí na rua, disseminando o maldito espírito de velocidade impregnado em nossas mentes nas manhãs de domingo...
Entre uma corridinha no sinal piscando, prestes a abrir para carros que aumentam os giros do motor em cima de mim e o desvio de quadril para driblar a moto que já partiu antes que o semáforo ficasse verde, pergunto-me sem obter resposta: que direitos são realmente resguardados aos pedestres? Que segurança é fornecida a quem opta por andar a pé, em detrimento aos engarrafamentos dos carros e do desconforto dos ônibus?
Como se não bastassem tantas ameaças nos asfaltos, convivemos com toda sorte de loucura também nas calçadas. Além da superlotação característica dos horários de pico, a título de exemplo, temos que conviver com o duelo de guarda-chuvas nos dias de garoa fina e frio, que assolam, invariavelmente, a cidade das quatro estações. Já quase perdi a vista umas três vezes em barbatanas de sombrinhas de senhoras. Até o pessoal da greve dos bancários criaram formas inusitadas de protestar, servindo uma canja de galinha esperta para os passantes. Só espero que a direção dos bancos não terminem tanto esforço pelo aumento de salário em uma fumegante pizza, em dia frio... Até porque aqui em Juiz de Fora, a meteorologia rima, verdadeiramente, com loteria e pode danar a fazer calor...
Pensando bem, talvez eu entre numa dessas auto-escolas para aumentar a massa de condutores e coloque mais um veículo nas ruas. Com o boom de vendas de carro engrossadas pelo IPI reduzido do ano passado, ninguém vai perceber se chegar mais um ao trânsito. Pode ser que um ou outro pedestre perceba, quando eu atirar uma poça d'água, em dia de chuva, ou quando eu não esperá-lo para atravessar a via. Mas isso logo passa. O pedestre, acima de tudo, anda com fé e não é qualquer coisa que vai lhe abalar.
Juliano Nery foi reprovado no exame de direção veicular no ano passado após deixar o carro morrer em um morro no bairro Bandeirantes. A partir dali, ficou ainda mais convicto de que é um pedestre nato.
Juliano Nery é jornalista, professor universitário e escritor. Graduado em Comunicação Social e Mestre na linha de pesquisa Sujeitos Sociais, é orgulhoso por ser pai do Gabriel e costuma colocar amor em tudo o que faz.
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