Um jovem casal se beija de modo antropof?gico ? minha frente, na extensa fila do cinema Palace, sess?o de domingo, 20h, em cartaz, "Batman Begins". Parece que um vai engolir o outro. Estou desacompanhado e tento disfar?ar o constrangimento com um certo ar de indiferen?a.
As outras pessoas logo atr?s certamente se sentem incomodadas, mas elas t?m com quem conversar. Desse modo, fingem que n?o est?o nem a? para o agarramento sem nenhum inc?modo com o voyeurismo a que est?o expostos. Para mim ? imposs?vel ignor?-los: eles est?o a um palmo de meu nariz. S?o pessoas de boa apar?ncia, diria que pertencentes a classe m?dia pra cima, bem produzidos nas roupas, possivelmente universit?rios ou quase l?.
O beijo era de cl?max sexual, e mesmo desviando o olhar, me chegavam aos ouvidos os ru?dos, causando-me, devo confessar, uma certa n?usea.
Contive o ?mpeto de dirigir-me a eles assim: "Desculpem-me, sem querer interromper, mas j? interrompendo, aqui est? uma grana para que voc?s se dirijam ? uma su?te do motel mais pr?ximo, onde poder?o se sentir mais ? vontade nessa t?rrida demonstra??o de amor."
Um pouquinho mais ? vontade ali, no sagu?o do Palace, seria um desnudar o outro e rolarem pelo ch?o.
Ocorreu, tamb?m, fingir um desequil?brio - n?s est?vamos pr?ximos do ?ltimo degrau da escada que leva ao bar do Palace -, esbarrar com o cotovelo na cabe?a dele, for?ando um acidente que lhes quebrasse uns dentes ou um decepasse um peda?o da l?ngua do outro. Depois, me desmancharia em mil desculpas, ocultando, ? claro, a sensa??o de vingan?a por me obrigarem a participar como espectador da constrangedora.
A express?o beijo antropof?gico n?o ? minha. Ouvia-a, certa madrugada, casualmente, pronunciada por nada menos do que Tom Jobim, em uma mesa vizinha na antiga Churrascaria Plataforma, no Leblon. Ele se referia, com ironia, mas em tom de censura, ao modo como os atores e atrizes se beijavam nas novelas de TV, j? naqueles tempos, em 1987, por a?.
Na roda de amigos, o assunto era a novela "Vale tudo", assinada por Gilberto Braga (no topo dos ?ndices de audi?ncia, a hist?ria era um primor de li??o ?s mulheres de como elas deviam usar o sexo como arma para suas conquistas amorosas e financeiras) e se falava de como as cenas de sexo eram cada vez mais ousadas na telinha.
Ilustrando sua admira??o, Jobim lembrava os beijos dos antigos filmes de Hollywood que, quando come?avam a ficar calientes, a c?mera se afastava, para enfocar o fogo na lareira, numa sutil refer?ncia ? evolu??o da cena de amor, em respeito ? sensibilidade dos espectadores, poupando-o de envolv?-los na intimidade sexual dos protagonistas.
As novelas s?o as principais divulgadoras e incentivadoras dos beijos antropof?gicos em p?blico. Eles se repetem exaustivamente, de forma sensacionalista, na medida em que nada acrescentam ao desenrolar das tramas e, geralmente, em cl?max sexual (vale insistir na express?o), tornando-se banais, enfadonhos, n?o importa a hora e para que tipo de espectador est?o sendo exibidos.
Assim, se tornou comum, em qualquer lugar - nas ruas, em condu?es coletivas, nos bares e restaurantes apinhados de gente e mesmo na porta dos col?gios - a troca de car?cias entre adolescentes, sem um pingo de vergonha de estarem protagonizando uma cena que a eleg?ncia e as boas maneiras recomendam que se desenrole entre quatro paredes, protegidos de olhares incomodados ou de avidez de testemunhas ao acaso. ? imposs?vel a terceira alternativa, a da indiferen?a, por mais liberal que o observador se classifique para entender a coisa como normal.
"Tamb?m, o que se pode esperar de uma gera??o que entende como m?sica rom?ntica as interpretadas por duplas sertanejas ou grupos de pagode?" - ouvi a pergunta recentemente de uma psic?loga. Fal?vamos de certas aberra?es e bizarrices do comportamento humano, que se espalham qual praga, e todos passam a aceitar como normais. Exemplo: o exibicionismo debil?ide e agressivo de sujeitos que desfilam em seus carros espalhando sonoridades infernais. Mas isso j? foi tema da cr?nica anterior.
Voltemos ?s cenas do quase sexo expl?cito em p?blico. Por mais que os jovenzinhos se sintam alinhados, bonitinhos, com a apar?ncia bem cuidada nas academias, a roupa de griffes caras, o beijo espalhafatoso, escandaloso - como o do casal na fila do cinema ? minha frente - os remete a um comportamento pr?ximo ao dos animais, que praticam o sexo ?s escancaras, por puro instinto animal - v? l? a redund?ncia. Serve para refor?ar a id?ia de que os seres racionais s?o devedores de um respeito aos que os rodeiam, que os irracionais n?o possuem.
Ser? que estou exagerando e me expondo ao rid?culo de uma cr?tica social ultrapassada? Fa?o a pergunta, ap?s reler o que foi exposto a? em cima, quando me contive a usar a express?o "atentado ao pudor", pois a? seria demais....
Mas, por coincid?ncia, enquanto reflito sobre tudo isso, e procuro as palavras para o par?grafo de encerramento, vejo na televis?o (s?o tr?s horas da tarde), uma propaganda em que um casal de crian?as de dez anos, no m?ximo, iniciam um flerte e se aproximam, timidamente, um do outro, numa pracinha florida, cen?rio rom?ntico, e ambos se sentam no mesmo banco.
A troca de olhares envergonhados prossegue at? que o garotinho desembrulha um chocolate, d? uma mordida, a garotinha se chega mais, e o que acontece? Um beijo na boca e n?o, como eu imaginava, o garotinho cedendo um pedacinho do chocolate a ela. Repito: s?o duas crian?as de dez anos.
Bem, depois do beijo antropof?gico na fila do cinema, e a do beijo adulto do menininho e da menininha, este a pretexto de aumentar a venda do chocolate, come?o a ter a certeza de que quem n?o t? nem a? - isto ?, conectado com o mundo atual - sou eu, e que preciso, urgentemente, de reciclar minhas id?ias e engavetar pudores ultrapassados. Ou n?o?
Minha amiga psic?loga, socorro!
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