A reportagem que Gabeira n?o pode escrever

Finalmente, o Museu Mariano Proc?pio recebeu uma boa bolada do Banco Ita? para as obras que h? muito j? deveriam estar conclu?das - se n?o todas, mas boa parte delas, especialmente a que diz respeito ? seguran?a.

A prop?sito, eis uma historinha reveladora de como o assunto j? fazia parte das preocupa?es de um jovem rep?rter, em in?cio de carreira, cheio de id?ias, que fugiam dos padr?es da ?poca, especialmente em JF, onde o marasmo e o comodismo ditavam o ritmo do jornalismo da ?poca, in?cio dos anos 60. Seu nome: Fernando Gabeira.

Em forma de reportagem a ser publicada no seman?rio Bin?mio, onde trabalhava, era sua inten??o expor a fragilidade do museu atrav?s do roubo de um quadro, ?leo sobre tela, sem t?tulo, retratando uma menina recostada, o tom azul-lil?s predominante, assinado pelo holand?s Jean-Honor? Fragonard (1732-1806), de boa cota??o no mercado internacional. De pequenas dimens?es, 15 cm x 31 cm, medindo com a moldura n?o mais que 30 cm x 50 cm, o sumi?o serviria para apontar a facilidade como se podia caminhar tranq?ilamente por todo o conjunto de salas e sal?es, tocar nas pe?as, e at? mesmo surrupiar uma delas, sem ser incomodado. Eram poucos os funcion?rios ou guias a circularem pelas dezenas de ambientes, ainda mais em um vazio dia de semana.

O plano: Gabeira e um amigo entram como simples visitantes e se dirigem at? a sala de pinturas, ao lado do sal?o principal, onde predomina a gigantesca "Decapita??o de Tiradentes", de Pedro Am?rico. Num momento seguro, um deles de olheiro dar? o sinal para que o Fragonard seja retirado da parede e atravessado por uma janela aberta, gradeada apenas no sentido vertical, permitindo a passagem da moldura entre as hastes de ferro. Na parte externa, lateral ao casar?o, um terceiro c?mplice recolhe o quadro, joga-o no banco de tr?s do carro, encobre-o com uma manta, e se prepara para partir, assim que embarcarem os dois, que saem pela porta da frente, naturalmente, sem despertar a mais leve suspeita na portaria.

Em poucos minutos, os tr?s estar?o no movimentado Bar e Caf? Ast?ria, tomando cafezinhos, tendo o Fragonard apoiado na quarta cadeira, ? vista dos transeuntes na movimentada esquina da Rio Branco com a Halfeld. Da mesma forma - Gabeira refor?a a argumenta??o - ? essa altura, a pintura poderia perfeitamente estar a caminho de Nova York, Amsterdam ou Paris, onde deve valer, por baixo, uns cem mil d?lares.

O quadro ser? fotografado em diversas situa?es para ilustrar a reportagem-bomba. Ali no Ast?ria, depois no Parque Halfeld, tendo ao fundo o Morro do Cristo, dentro de um bonde, na fila de pessoas para uma sess?o de cinema no Central, e at? no Bar Brasil, no centro da zona da Rua Henrique Vaz... - Gabeira diverte-se mais ainda com a ?ltima sugest?o.

O editor-chefe do Bin?mio, Fernando Zerlottini, chega a considerar a pauta com um assunto bastante atraente, bem na linha sensacionalista dos rep?rteres de "O Cruzeiro", que Bin?mio de certa forma adotava. Sem d?vida, ? mat?ria para dobrar a venda do jornal. Mas, ap?s meditar um instante, Zerlottini bateu o martelo proibindo a reportagem. Concluiu que n?o passava de mais uma das loucuras do irrequieto e rebelde Gabeira. Sente um calafrio s? de imaginar a rea??o da diretora do museu, sua amiga Geralda Armond, ouvindo a not?cia: o Fragonard desapareceu, foi roubado! Na certa, ela teria um ataque card?aco fulminante, antes de saber a realidade.

Gabeira ainda tentou reverter a situa??o: dariam um jeito da diretora tomar conhecimento da trama aos poucos, do tipo "seu gato subiu no telhado..." , convencendo-a de que, ao fim das contas, seria um golpe de mestre positivo, um bom gancho para o museu requerer mais verbas destinadas ? sua seguran?a. Mas acabou desistindo, diante da intransig?ncia do chefe, ambos sentados no Bar Rio Lima (atual restaurante Bras?o), l? pela terceira caipir?ssima.

O assunto morreu e o roubo do Fragonard foi riscado da rela??o de pautas, id?ias e projetos ousados que conduziriam o atual deputado federal Fernando Gabeira vida afora por feitos hist?ricos, legend?rios, como o que evoluiu at? o seq?estro do embaixador americano, em 1969 e o seu ex?lio por quase dez anos.

O quadro continua sendo uma das pe?as ricas do museu, embora meio perdido entre dezenas de outros no imenso sal?o, onde h? pouco tempo, parte do teto n?o resistiu ao rigor de uma chuva mais forte. Pass?vel de ser retirado da parede, basta desprender de um prego na parede o arame atravessado no verso para t?-lo entre as m?os.

Mas, vale lembrar a quem esteja pensando em fazer alguma bobagem, inspirado na reportagem que Gabeira n?o escreveu, seja com fins jornal?sticos ou assumidamente financeiros: naqueles tempos, o museu n?o possu?a o sistema de vigil?ncia televisiva, esquadrinhando todos os seus cantos como hoje e muito menos o corpo de funcion?rios, guias e vigilantes bem mais numeroso do que a meia d?zia daquela ?poca - um deles o ?nico respons?vel pela seguran?a propriamente dita, um sonolento guarda-civil.

Ele n?o sabe do que escapou...


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