FOTO: Divulgação - Reflexões sobre a Copa do Mundo de Clubes da FIFA: um drible no eurocentrismo?

Enquanto os olhos do mundo se voltam para os Estados Unidos, sede da atual Copa do Mundo de Clubes, um dado simbólico e, ao mesmo tempo, provocador chama a atenção: os times brasileiros estão encantando, jogando bem, vencendo e surpreendendo. Após 22 partidas, os clubes sul-americanos apresentam excelente desempenho, com destaque para a invencibilidade brasileira. Fluminense, Botafogo, Flamengo e Palmeiras lideram seus grupos. Do outro lado, as equipes do chamado “Velho Continente” já acumulam algumas derrotas. Com efeito e por implicação, uma pergunta se impõe: será que o mundo, a cultura, a sociedade, ainda pode ser lido a partir do centro europeu? Ou será que a margem está, mais uma vez, se (re)criando no “jogo”?

Não se trata apenas de futebol. O que está em jogo, no sentido mais profundo, é uma lógica de leitura de mundo que por séculos atribuiu centralidade ao pensamento, à estética e ao modo de vida europeu, relegando à margem os saberes, corpos e práticas oriundos do Sul global. O campo, aqui, é mais do que espaço de disputa esportiva: é também território de narrativas, de identidades e de epistemologias. Quando os clubes latino-americanos vencem, há algo que extrapola o placar: é a fissura simbólica em uma ordem que insiste em hierarquizar culturas, inteligências e formas de viver. É como se, no drible, houvesse também um gesto de resistência: um “não” à lógica colonial que ainda estrutura o imaginário ocidental.

Esse movimento de deslocamento do centro para as margens, tão visível nos gramados, também se faz urgente na educação. Afinal, se no futebol as periferias do mundo ensinam com criatividade, improviso e potência, por que seguimos insistindo em currículos escolares que priorizam apenas as matrizes europeias do saber? As escolas, assim como os campos de jogo, são espaços de disputa simbólica, em que se define quem tem voz, quem pode pensar, quem pode criar. Romper com a lógica colonial na educação implica reconhecer que há saberes outros: negros, indígenas, populares, que não apenas resistem, mas propõem, constroem e reinventam o mundo. É preciso deslocar o olhar, sair do centro, escutar as vozes da borda. Porque educar, em sua essência, é também um ato de rearranjar o mundo e seus significados.

Repensar o currículo é, portanto, mais do que uma tarefa pedagógica: é um gesto político. Não se trata de negar os saberes clássicos, mas de questionar a exclusividade que lhes foi conferida como única via legítima de conhecimento. A pedagogia decolonial nos convida a reverter essa lógica, incorporando narrativas que foram silenciadas pela colonialidade do saber. É necessário criar espaços em que a oralidade, a ancestralidade, a espiritualidade e a corporeidade também sejam reconhecidas como modos válidos de ensinar e aprender. Como nos dribles imprevisíveis de um jogo que escapa ao roteiro, a educação precisa se abrir ao novo, ao outro, ao diverso. Porque é na pluralidade das experiências que se forma um conhecimento mais vivo, mais crítico e, sobretudo, mais equitativo.

Portanto, tal como no futebol, em que a margem ousa, reinventa e redefine o jogo, a educação precisa reaprender a olhar para o que foi historicamente desvalorizado. Precisamos escutar as vozes que falam desde os cantos, desde os quilombos, aldeias, favelas e periferias. Elas não apenas resistem, elas criam. Criam saberes, linguagens, modos de existência. E é esse movimento que desafia a centralidade de um mundo feito à imagem de poucos. Quando a escola acolhe essas vozes e se permite jogar com outras regras, outras epistemologias, ela deixa de ser reprodutora de um jogo viciado e passa a ser terreno fértil de transformação. Porque educar é mais do que ensinar: é provocar deslocamentos, escutar o que vem de fora do eixo e reconhecer, nas bordas, a força que reinventa o jogo da vida.

Divulgação - Reflexões sobre a Copa do Mundo de Clubes da FIFA: um drible no eurocentrismo?
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Jungley Torres

Filosofia

É professor com formação em Filosofia, História, Ciência da Religião e Pedagogia. Suas principais áreas de atuação e pesquisa abrangem Filosofia da Educação e Hermenêutica Filosófica, com ênfase em desdobramentos ontológicos, existenciais e fenomenológicos. Destaca-se, sobretudo, o interesse por temas relacionados à intersubjetividade, aos saberes que orientam as práticas pedagógicas e ao discurso pedagógico contemporâneo. Suas pesquisas concentram-se na linguagem como eixo central da relação entre ser humano e mundo, bem como no diálogo, concebido como fundamento da práxis pedagógica.

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