SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Era a manhã de uma segunda-feira quando o courier Eric Griffin chegou à Pinacoteca do Estado de São Paulo. Designado pelo Museu de Arte da Filadélfia para acompanhar a chegada da obra "O Banco do Parque", de Horace Pippin -e garantir que ela fosse instalada sem nenhum tipo de dano --, o funcionário fiscalizou o desembalar da pequena tela, com pouco mais de 30 centímetros de altura por 45 de largura, de uma caixa que ultrapassava um metro de altura e também de largura.

Tirando e recolocando os óculos de grau diversas vezes para observar a peça ora de longe, ora de perto, ele quis saber, inclusive, qual tipo de parafuso seria utilizado para a fixação do quadro, autorizando, logo depois de observá-lo na parede, uma demão de tinta para disfarçar o suporte metálico que avançava para além da caixa de acrílico que foi fixada na obra para protegê-la ainda mais.

Durante a montagem da exposição "Pelas Ruas: vida moderna e experiências urbanas na arte dos Estados Unidos, 1893-1976", que abre neste sábado na Pinacoteca, essa situação se repetiu algumas vezes dado o fato de que, além do courier de "O Banco do Parque", o espaço recebeu outros quatro profissionais, representantes de instituições como o Museu de Arte Contemporânea de Chicago e o Museu de Arte do Condado de Los Angeles, para verificar a chegada e a instalação de trabalhos assinados por nomes como Andy Warhol e Charles White.

O procedimento, que não é incomum no meio da arte, mas se intensifica quando se trata de itens de grande valor, dá a dimensão do que esperar da mostra realizada em colaboração com a Terra Foundation for American Art e que apresenta mais de 150 obras de 78 artistas e 16 acervos diferentes -o foco está na produção do fim do século 19 e do século 20.

Mas a maior simbologia do que propõe a curadoria, assinada por Valéria Piccoli, Fernanda Pitta e Taylor Poulin, se deu no momento em que a tela do pintor Horace Pippin ocupou a parede do espaço expositivo de 500 metros quadrados, mantendo-se, durante o primeiro dia de montagem, como o único exemplar de seis salas.

A pintura, que traz a representação de um homem negro sentado em um banco no parque, com o olhar perdido diante do vazio, evidencia um recorte da modernidade americana que recusa a ideia única de progresso e se centra nas ambivalências dos centros urbanos, situados entre o individual e o coletivo, a convivência e a segregação, o anonimato e o engajamento.

Não à toa, o marco inicial para a escolha das obras foi a Exposição Colombiana, em 1893, que celebrou os 400 anos da chegada de Cristóvão Colombo à América e passou a ser considerada um divisor de águas na forma como o Brasil se apresentava nas feiras mundiais, já que marcou a primeira vez que o país participou de um evento como nação republicana, ancorado na imagem de um Estado a caminho da industrialização -a obra "Leitura", de José Ferraz de Almeida Júnior, exposta na ocasião, faz parte do acervo da Pinacoteca.

Naquele momento, quando os Estados Unidos serviam como modelo de desenvolvimento, inclusive para o Brasil, no entanto, a feira se consolidou como um evento repleto de contradições, uma vez que prestava tributo ao progresso da era industrial frente a 250 anos de escravidão.

"Os visitantes da Exposição Mundial Colombiana que estão cientes desses fatos, especialmente os estrangeiros, naturalmente questionarão: por que as pessoas de cor, que constituem uma parcela tão grande da população norte-americana, [...] não estão presentes de forma mais visível nem foram melhor representadas nesta exposição mundial?", escreveu a feminista afro-americana Ida Wells no folheto publicado à época, intitulado "A razão pela qual os norte-americanos de cor não estão na Exposição Mundial Colombiana".

Assim, se a feira de 1893 propagava uma hierarquia racial, um dos objetivos da mostra atual é dar conta da crescente onda de imigração que foi responsável por alterar o contexto dos Estados Unidos. O título "Pelas Ruas", como escreve a pesquisadora Amy Chazkel no catálogo da Pinacoteca, evoca questões legais e socioculturais que constituíram o espaço público em um período marcado por leis que impunham a segregação racial.

"A gente estava no processo de repensar o acervo da Pinacoteca, revendo a posição daqueles que tinham sido negligenciados pela história e repensando a representatividade étnica e de gênero", explica a curadora Valéria Piccoli. "Quando partimos para essa exposição, também começamos com a ideia de traçar uma narrativa da arte americana que não fosse baseada nos nomes que todo mundo conhece."

Como resultado, surgiram artistas de várias nacionalidades que, à margem da hegemonia da abstração, praticavam uma arte figurativa e socialmente engajada. Entre eles, estão o chinês Yun Gee e a japonesa Miki Hayakawa, nomes que se estabeleceram nos Estados Unidos e que, na exposição, participam com retratos de pessoas que, como eles, pertenciam a grupos minoritários. Temas como a Chinatown e o Harlem também figuram em obras de pintores nativos como Glenn O. Coleman e Elizabeth Nottingham, respectivamente.

Dividida em seis salas, a mostra aborda desde a representação de arranha-céus, que traduzem o dinamismo da cidade, até a solidão da vida urbana em obras do núcleo "O Individual e Coletivo". Neste, e em vários outros momentos, é possível observar como a pintura e a fotografia convergem para os mesmos motivos.

A perspectiva alta e angular da imagem "Esquina de Nova York", de Walker Evans, em um clique de 1928, é similar a de "Sombras da Noite", água-forte assinada por Edward Hopper em 1921. O mesmo universo, que capta a presença humana em meio às ruas vazias, aparece de novo em "Esquina, Edifício de Tijolos", de José Clemente Orozco em 1929.

O esforço de trazer uma narrativa mais abrangente sobre a arte feita nos Estados Unidos está na escolha de artistas que, apesar de sua projeção, se mantêm quase desconhecidos no cenário brasileiro. Emma Amos, que ampliou o debate sobre gênero e raça em obras cheias de experimentação, a partir da combinação entre a pintura e o têxtil, faz parte da mostra com uma tela produzida na década de 1970, quando ela era a única mulher a integrar o coletivo de artistas afro-americanos Spiral Group.

A Amos junta-se Charles White, que ganhou uma retrospectiva no MoMA em 2018, mas somente agora tem uma obra exposta no Brasil, com a série "Cartaz de Procurado", de 1970, na qual usa como referência anúncios sobre leilões de africanos escravizados.

Mas mesmo na inclusão de nomes como Andy Warhol, "Pelas Ruas" opta por um aspecto menos explorado do artista pop ao escolher uma gravura de 1965 em que ele se apropria de uma fotografia da revista Life para abordar o evento que se tornou conhecido como Birmingham Race Riot, quando um comissário de polícia, no Alabama, ordenou que cães atacassem uma marcha por direitos civis. A peça, que faz parte do núcleo "Engajamento e Distanciamento", soma-se a muitas imagens de manifestações por justiça social e novas políticas públicas.

"Há uma certa frustração com a situação atual do país e essa vitalidade que a gente vê no fim da exposição, com o reconhecimento de tanta gente na rua gritando por coisas que a gente considerada como fatos dados, mas estão agora ameaçados", afirma Piccoli.

Nesse panorama todo, com os mais de 150 trabalhos que preenchem as seis grandes salas do museu, o homem negro de Horace Pippin já não está mais sozinho. Acompanhado das peças que compõem os sete núcleos, ele representa, para quem visita o espaço, apenas mais uma representação -entre as muitas possíveis- sobre a existência na cidade.

E possibilita, como sugere o texto curatorial, que os visitantes reflitam "sobre suas próprias experiências de vida em núcleos urbanos, enquanto parte de um corpo coletivo". Uma reflexão que, no segundo andar do edifício da Pinacoteca, ganha outras feições na obra do acervo "Corpo Mole 3", de Marcelo Cidade, feita de papelão e cimento -uma alusão aos abrigos decorrentes da exclusão social. São ambivalências que, pelas ruas em torno da instituição, tornam-se ainda mais latentes na observação do que se tornou o centro da cidade de São Paulo.


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