SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - "Eu admiro muito quem não escreve", diz Marilene Felinto. "Nós éramos em cinco irmãos na minha casa, quatro mulheres e um homem, e nenhum deles precisou escrever para elaborar trauma nenhum."

A declaração revela bem a ambivalência de uma escritora que sempre se pôs num limiar dentro e fora da literatura, dentro e fora do jornalismo, dos círculos sociais. É elogiada como uma das maiores autoras brasileiras por acadêmicos da estirpe de José Miguel Wisnik e Marilena Chauí, mas continua se mostrando --e se portando-- como outsider incorrigível.

É um comportamento que reflete um dos melhores contos de "Mulher Feita", seu novo livro. O título da história, "Primeira Morte", se refere à decisão do protagonista de deixar de escrever para se tornar mecânico, destilando um discurso farto de elogios ao trabalho braçal contra o intangível da literatura.

"Como escrever era um processo vivo, pulsante, não quis mais conviver com aquilo", diz o conto. "Perdeu o interesse por tudo o que tivesse vida própria e fosse se constituindo como um corpo autônomo, que cede ou resiste a seu bel-prazer, que surpreende, obra inacabada."

Felinto ficou, ela mesma, 16 anos sem publicar um livro. Ressuscitou com as próprias pernas numa publicação independente e agora traz este inédito numa editora de prestígio, a Fósforo, depois de reeditar seu clássico "As Mulheres de Tijucopapo" na Ubu.

"Parto do ponto de vista de que escrever é uma coisa que as pessoas normais não fazem", diz a autora, colunista deste jornal. "Eu sei que tem um valor, se as pessoas leem é porque acrescenta algo a elas, mas tem uma sensação de inutilidade que não sei explicar direito."

O que ela também sabe, ainda que não enuncie dessa forma, é que escrever para ela é inevitável. Só assim conseguiu lidar com a mudança traumática de que falou lá no começo --a migração da família de Pernambuco para São Paulo, de uma casa pacata para a violência da metrópole, quando ela era pré-adolescente.

Diz que é isso que move ainda hoje as placas tectônicas de sua literatura. "Esse passado que ficou em Recife é muito forte para mim, sempre, sempre. Fui muito marcada por aquele contexto familiar e social, de fome, mas de muita alegria. Uma paisagem idílica que é o contrário de São Paulo."

Isso aparece em contos carregados de nostalgia neste "Mulher Feita", a maior parte olhando para um passado rural que, se não é idealizado, é observado com curiosidade engatilhada pelo afeto.

Em "Hipertexto a Lápis", uma mulher adulta tenta desenhar a professora que tentou lhe ensinar, quando menina, o que era a beleza. "Canja" elabora uma receita de frango com uma viagem pela memória sensorial. "Formiga Moderna" é o encontro de duas gerações distantes de mulheres, fascinadas uma pela outra e unidas pelo costume de comer tanajuras.

Como se vê, e como dá para prever pelo nome da coletânea, são contos interessados na evolução da experiência feminina. A narrativa que intitula o livro relata o gradual processo de uma adolescente que se acostuma à existência de seus seios, do estranhamento à afirmação.

"A imagem ao espelho ia aos poucos voltando ao normal: peitos. Socorro! Eles eram, afinal, órgãos mais visíveis, mais notáveis do que a trouxa que os homens carregavam entre as pernas, a trolha de que muitas vezes ela teve vontade de rir, vida afora, no calor dos dias."

Nas palavras mais inspiradas de José Miguel Wisnik, são contos que exploram o meio do caminho entre a mulher feita e a mulher se fazendo. E na interpretação de Marilena Chauí --que dividiu com ele e Felinto a mesa de lançamento do livro, em São Paulo--, são histórias que narram como a diferença vai se tornando identidade.

Essa dicotomia é integral na vida e obra de Felinto. Tanto no evento que a celebrava quanto em privado a este repórter, a autora reforçou aos quatro ventos que este seu novo livro não tem a menor importância.

Mas, na mesma entrevista, comentou com vivacidade sobre o romance que está preparando --e espera publicar ano que vem. Pretende que seja seu último.

Ela lembra quando, nos anos 1990, entrevistou Paulo Freire e Ariano Suassuna para a Folha e ouviu de cada um dos dois, então septuagenários, que ainda não podiam morrer de jeito nenhum --porque precisavam terminar o livro que estavam escrevendo. "E eu não quero chegar aos 70 anos achando que tenho mais um livro para escrever", diz Felinto, aos 64.

Vamos ver. Como sabemos, para os escritores, morte é algo bem relativo.

MULHER FEITA

Preço: R$ 54,90 (80 págs.)

Autor: Marilene Felinto

Editora: Fósforo