SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - No dia 11 de setembro de 2001, Lenora de Barros assistia ao noticiário quando foi interpelada por imagens de aviões colidindo com as Torres Gêmeas. A artista plástica desatou a procurar respostas para a tragédia, vasculhando fotografias antigas em gavetas de seu apartamento, até montar a obra "Procuro-me", em que autorretratos se dispõem como numa ficha policial.

Neles, Barros aparece com os olhos arregalados, sempre em alerta. Em cada uma das fotos, ela usa um cabelo diferente, em várias tentativas de encontrar sentido em tudo o que se passava. Abaixo delas, a expressão "Procuro-me" é escrita em letras maiúsculas. Mais de 20 anos depois, a obra ganha outros significados, sendo apropriada por cada espectador na mostra "Lenora de Barros: Minha Língua", agora na Pinacoteca, em São Paulo.

A curadoria de Pollyana Quintella estende a obra até os banheiros da instituição, onde todos podem tirar autorretratos nos espelhos sob o selo "Procuro-me". O prosaísmo da ação não só recria aquele acontecimento, mas reflete a irreverência da autora da montagem, que encontrou a arte na vida ao rés do chão. Reunindo 40 obras, a exposição se situa entre a palavra, a imagem e o som, os três elementos que permeiam a mente de Barros em seu novo trabalho, a videoinstalação "A Cara. A Língua. O Ventre", concebida neste ano.

"Não há hierarquia entre poema ou imagem, às vezes as ideias são concebidas em separado, às vezes a obra de arte já compõe a linguagem verbal e visual", ela diz. Filha de Geraldo de Barros, um dos fundadores da arte concreta, a artista formou-se em linguística em 1970. Na época, havia uma penca de revistas, por onde era escoada toda a produção de artistas e poetas marginais.

Uma delas era a Navilouca, idealizada por Waly Salomão e Torquato Neto, que assinava, à época, a coluna Geleia Geral no jornal Última Hora. "Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela", escreveu Torquato, num dos artigos.

Barros é também filha desse tempo. Acrescentando, por óbvio, o pendor concretista que nutriu, quando se juntava a seus amigos Julio Plaza e Régis Bonvicino em conversas com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos nos bares de Perdizes. Em 1975, algumas de suas obras já estavam na edição da revista "Poesia Em Greve" e, oito anos depois, os poemas visuais integraram a 17ª Bienal Internacional de São Paulo.

A mostra da Pinacoteca resgata o período de 1993 a 1996, quando Barros assinava a coluna "Umas" no extinto Jornal da Tarde. "Foi uma época fundamental, existe um antes e depois desse período", ela afirma. "Ganhei disciplina e um sistema para o meu processo criativo." A experiência na imprensa iria se intensificar na Folha de S.Paulo, onde a artista trabalhou por seis anos, no início daquela década.

Bem antes, em 1979, ela já havia criado "Poema", uma de suas obras mais conhecidas, incluídas na exposição da Pinacoteca. Uma série de seis fotos em preto e branco mostra diferentes inserções da língua da própria artista numa máquina de escrever. Ora, a língua aparece túrgida, devassando uma letra, uma tecla. Ora, insinua movimento, erótica, lambendo toda a máquina, contrapondo o orgânico e o inorgânico. Há ainda a boca que avança contra as hastes metálicas, todas arrepiadas, arrepiando também o espectador.

Entre caras e bocas, a língua é a parte do corpo que mais aparece nas três galerias da mostra. As fotos ampliadas de "Linguagem", série feita entre 1990 e 2022, detalham a forma rugosa da língua da artista, de tal forma que já não sabemos se estamos diante do órgão muscular ou da superfície de outro planeta.

Ao longo do tempo, Barros cultivou uma expressão facial de fazer inveja a muitas atrizes. Seu rosto intriga, capta o espectador, como mostram os vários autorretratos que produziu na carreira -"Silêncio (A Enfermeira)", de 2014, ou "Fogo No Olho", de 1994, por exemplo.

Se não há hierarquia entre palavra e imagem, Barros explora, na série, os diferentes significados da palavra "língua", revelando o que antecede seu processo criativo: o estudo da linguagem. Não por acaso, o projeto verbivocovisual da poesia concreta, isto é, a integração na obra de arte das dimensões verbal, visual e sonora da linguagem, é tão caro à artista, que se liberta do limite do verso.

Em "Lenora de Barros: Minha Língua", as palavras sobem pelas paredes. "Ri-Chora", concebido entre 1975 e 2017, revela a filiação de Barros aos princípios da arte concreta. Na parede branca, duas colunas são justapostas, ambas com interjeições similares: "AH, AH, AH" ou "OH, OH, OH".

As duas palavras podem exprimir alegria ou tristeza, a depender de onde estejam, se na coluna "ri" ou "chora". Na parede branca e silenciosa, ouvimos, então, os ecos das interjeições, assim como escutamos ao longe o barulho dos pregos que sustentam as letras da palavra "silêncio", estendida no alto da sala, na obra "Pregação", de 2016.

Mas, para atingir a fala, Barros também prescinde da palavra, como revela "Máscaras de Mão", conjunto de fotos de 2017, em que afunda seu braço na argila. Enquanto concedia entrevista na segunda galeria da exposição, ela mostrava o interesse pela qualidade do material, com a fala hesitante, que se moldava feito argila. "Não conseguia entender muito bem como usar aquilo, mas me lembrei do ventríloquo, boneco que sempre me interessou."

A massa amorfa não era um corpo estranho à artista. Ainda em 1975, Barros registrou a fotoperformance "Homenagem a George Segal", em que aparece escovando os dentes até a pasta transbordar todo o seu rosto. Era uma referência às esculturas de gesso do artista americano, sempre figuras solitárias e patéticas. Na década seguinte, ela revisitou a performance, transformando-a numa videoinstalação.

Antes da palavra "corpo" se tornar obrigatória em textos curatoriais, Lenora de Barros já exprimia consciência de que o corpo era a morada da linguagem: uma prisão. Por isso, o rosto da artista aparece sequestrado por um plástico transparente, asfixiado, numa sequência de quatro fotos, formando o dizer "mim quer sair de si".

Na tensão entre palavra e imagem, plástico e pele, Barros explode a língua, encontrando, então, as ruínas da linguagem.


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