SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Numa tira retangular, pedras de ouro são lapidadas em forma de "L". Uma é sobreposta à outra até formar o desenho de um bracelete. Assimétricos, os vazios dos encaixes são preenchidos por quadrados, também dourados, divididos em quatro linhas horizontais e verticais. Sobre cada um deles, Roberto Burle Marx usou tinta guache para emular uma água-marinha, pedra de um azul claríssimo, brasileiríssima.
O bracelete ficaria bem com um colar, imaginado por Haroldo, seu irmão dois anos mais velho. Em campos opostos daquele círculo, há o fecho e um adorno, pendendo à frente, todo cravejado pelo verde de quatro esmeraldas. Usando as pedras brasileiras, os irmãos Burle Marx fundaram, nos anos 1950, a joia moderna e nacional, agora redescoberta em livros, mostras e pelo próprio mercado.
Mais conhecido pelos projetos de paisagismo, Roberto foi pintor, escultor, tapeceiro e, dizem, tinha até uma bela voz de tenor. Mas pouco se sabe sobre Haroldo, que dedicou toda a vida à ourivesaria. Uma entrevista publicada no jornal Correio da Manhã em 1961 revela o prestígio do joalheiro na elite cultural e econômica da época.
"A beleza que oferecemos com nossas joias é trazida do solo e da liberdade do chão e do infinito", ele disse. Segundo Haroldo, o objetivo da parceria era orientar o bom gosto da sociedade, oferecendo também um patrimônio de beleza ao país.
Organizador de "Folhas em Movimento", livro de correspondências do paisagista lançado em junho, Guilherme Mazza afirma que, no final dos anos 1940, Roberto decidiu apoiar a carreira de Haroldo, ainda sem vocação definida. Os irmãos não se tornaram sócios, mas, numa oficina no edifício Odeon, no centro do Rio de Janeiro, o ourives recebia os croquis de Roberto para lapidar as pedras.
Formado em direito, Haroldo havia estudado gemologia -ciência que estuda pedras preciosas- na Alemanha e, nas três décadas seguintes, viajou pelos garimpos de Minas Gerais, Goiás e Bahia para escolher gemas.
O uso de pedras brasileiras selecionadas por Haroldo, a forma límpida e orgânica do traço de Roberto e a lapidação na técnica conhecida como cabochão, que aproveitava as curvas, apresentaram a riqueza mineral do Brasil ao exterior.
Desse modo, os irmãos Burle Marx subverteram até mesmo a escala de valores das gemas. Antes da joia nacional, o mercado considerava topázios, turmalinas e opalas pedras semipreciosas. Os consumidores brasileiros se limitavam a reproduzir peças europeias, em safira, rubi e diamantes, pedras com valor agregado bem superior.
A produção de Roberto e Haroldo rompe o ciclo da joalheria tradicional, e os brasileiros puderam, enfim, se mirar no reflexo da natureza do próprio país. "Tenho desenhado muitas joias para Haroldo, muitas das quais são verdadeiramente bonitas; os entendidos acham que podem perfeitamente ser expostas na Europa, nas melhores casas", escreveu Roberto, em 1959, numa carta ao irmão mais velho, o pianista Walter.
O apogeu da joia brasileira coincidiu com a nova galeria de Haroldo, na rua Rodolfo Dantas, na lateral direita do Copacabana Palace. Ali ele montava vitrines para passantes mais sofisticados -e ricos.
Ao longo do tempo, Haroldo amealhou clientes famosos, como Yolanda Costa e Silva, mulher do presidente Artur Costa e Silva, o banqueiro David Rockefeller, as atrizes Natalie Wood e Merle Oberon, além do tenor espanhol Plácido Domingo. As obras dos irmãos Burle Marx se tornaram cartão de visitas das autoridades brasileiras. Nesse período, o Itamaraty as oferecia a chefes de estado de todo o mundo.
Mas, em 1965, Haroldo e Roberto brigaram e nunca mais voltaram a se falar. Ninguém sabe ao certo o que motivou o rompimento dos irmãos Burle Marx.
Mazza, que prepara um livro sobre os croquis de Roberto, pensa que Haroldo se mostrou cioso do paisagista, já considerado pela sociedade o principal artista da dupla. Roberto não mais desenharia joias. Enquanto isso, seu irmão se mudou para os Estados Unidos, nos anos 1980, onde atraiu à sua galeria toda a elite de Nova York.
Haroldo nunca se desgarrou da influência artística do irmão, mas desenvolveu um estilo popular, inserindo mais diamantes em meio às pedras de cor e optando por peças grandes, que originavam joias mais pesadas.
As peças desenhadas pelos irmãos Burle Marx são encontradas em leilões, mas o rompimento entre Roberto e Haroldo ainda rende debates acalorados sobre quem teve protagonismo na criação da joia brasileira.
Há dois anos, o colecionador Fernando Abdalla comprou de um amigo da mulher de Haroldo duas centenas de croquis das joias dos irmãos Burle Marx. Metade dos desenhos, obras de arte antes mesmo de serem executadas, ganhou a exposição "Jewels by Brazil's Burle Marx Brothers" na galeria Arte132, em Moema, na zona sul paulistana.
Em geral, os desenhos, todos feitos entre 1964 e 1972, eram realizados sobre papel preto e lápis de cor branca. Depois, eram preenchidos com guache, que indicava qual pedra deveria ser usada. Na parede do espaço, as diferenças entre os irmãos são notórias. Segundo Abdalla, Haroldo foi influenciado por Roberto, mesmo depois do rompimento, tendo desenvolvido um estilo até mais sofisticado que o do paisagista.
A voz do colecionador destoa da opinião dos críticos. "Roberto fazia um tipo de joia difícil de ser consumida", diz Antonio Carlos Suster Abdalla, organizador da mostra -que não tem parentesco com o colecionador. "Esse é um aspecto que difere a obra de arte de um simples produto, suas formas eram imprevisíveis."
Por ironia, ele conta que as joias de Haroldo são mais encontradas em leilões estrangeiros, alcançando cifras bem maiores do que as do irmão, algo em torno de US$ 100 mil, cerca de R$ 518 mil, contra R$ 20 mil do irmão. Entre semelhanças e diferenças, muitos compradores pensam ter uma joia desenhada por Haroldo, mas que foi concebida por Roberto, e vice-versa.
As confusões ocorrem porque o traço do joalheiro está contaminado pelo ideal do paisagista do modernismo brasileiro. A mostra "Paisagem Construída: São Paulo e Burle Marx", que começa neste mês no Centro Cultural Fiesp com curadoria de Guilherme Wisnik, Helena Severo e Isabela Ono, mostra em fotos e vídeos que o traço usado por Roberto para projetar espaços da cidade, como o parque Burle Marx, era o mesmo das joias.
Basta comparar, por exemplo, o painel do parque em frente ao espelho d'água com aquele mesmo bracelete, da exposição de croquis. Se observarmos o bracelete do alto, teremos, então, a mesma superfície descontinuada, com formas geométricas que se fecham em cores vivas.
Haroldo, sobretudo quando recebia os desenhos do irmão, tinha a mesma fonte de inventividade, as formas livres e curvilíneas tão características da arquitetura moderna. Podemos, afinal, comparar o uso de pedras brasileiras com a vegetação nativa, valorizada pelo paisagista.
O escritor Francesco Perrotta-Bosch lança, daqui a dois anos, uma biografia de Roberto pela editora Todavia. Segundo ele, Roberto Burle Marx era um artista que não reconhecia escalas. Trabalhava em pedras preciosas ou num parque como o aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro.
"Ele inventou um desenho próprio, uma estética moderna", afirma. "Roberto era um gênio de botânica que seguia a mesma matriz formal em todos os seus trabalhos."
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