RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) - O rosto da mãe biológica se projeta nas feições de Milton Nascimento. Olhos, nariz, boca. Ela se prolonga ainda na alegria de cantar de uma das maiores vozes da música internacional. A foto 3x4 da carteira de trabalho da empregada doméstica Maria do Carmo, a Carminha, em abril de 1940, é uma solitária imagem agora revelada pela prima do cantor, Vilma Nascimento, que decidiu escrever sobre a história da família.
Seu livro inédito devolve uma história ao rosto de Carminha. Antes dos dois anos, Bituca -apelido de infância- perdeu a mãe para a tuberculose. Sem condições de criá-lo, a avó materna, Maria, aceitou o pedido de adoção de Lília Silva Campos, filha de Augusta, a dona da pensão onde Carminha trabalhava no Rio de Janeiro. O cantor viu a foto da mãe na adolescência, mas o documento permaneceu no arquivo de familiares.
Ainda sem editora, "De Onde Vem Essa Força" narra a saga feminina da família Nascimento, proveniente da cidade colonial mineira Lima Duarte, povoada às margens do Rio do Peixe, e revela o ambiente de pobreza da primeira infância do artista que completa 80 anos nesta quarta, dia 26. No centro das memórias, Maria Antonia, que viveu entre 1900 e 1980, e seus filhos Carminha, Djanira, Tião, Jandira, Alcides, Chiquinha, Ercília, Teresa, Glória e Nair.
"Depois que a mãe faleceu, lembro de Bituca adolescente em Juiz de Fora, com a tia Ercília. Aí ele começou a fazer muito sucesso. Em 1970, no Rio, eu e minha irmã, Vanda, fomos a um show dele no Teatro Santa Rosa e passamos a nos aproximar mais", conta Vilma, hoje residente em Salvador. Nos últimos 20 anos, com a ajuda de seu marido, Jary Cardoso, que foi repórter do jornal Folha de S.Paulo, ela colheu depoimentos de tias e parentes em Minas Gerais.
Celebrando as origens do compositor, a canção "Raça", de Milton e Fernando Brant, cita os nomes de mulheres de sua família biológica: "Todas Marias, Maria Dominga/ Atraca Vilma e Tia Ercilia".
O itinerário de sua mãe coincide com o de milhares de brasileiras negras e pobres. Carminha, viva entre 1918 e 1944, cursou o ensino fundamental e migou para o Rio. Tinha 1,63 m de altura e olhos e cabelos castanhos. Em 1939, lavava e cozinhava. De vida curta, teve dois empregos formalizados.
O segundo registro aponta para um trabalho na rua Conde de Bonfim, 472, na Tijuca, com o salário de 150 mil reis mensais. "A assinatura como empregador e do Sr. Edgar de Carvalho e Silva, marido da Dona Augusta de Jesus Pitta -familia que viria a ter papel decisivo no futuro de Bituca, menino que Carminha daria a luz dois anos depois de admitida naquele lar", diz Vilma Nascimento no livro assinado junto com Jary Cardoso, à frente da pesquisa e redação, e o jornalista João Marcos Veiga, responsável pela redação final.
Ercília, a tia de Bituca citada em "Raça", ainda viva aos 90 anos, testemunhou o gosto de Carminha pela música popular. Ela imitava a cantora Carmen Costa e entoava com insistência dois sambas de Ataulfo Alves -"Sei Que é Covardia", em parceria com Claudionor Cruz, e "Oh!, seu Oscar", com Wilson Batista. Assim, a canção "A Feminina Voz do Cantor", de Milton e Fernando Brant, se enche de novos significados: "Minha mãe que falou/ Minha voz vem da mulher/ Minha voz veio de lá, de quem me gerou".
No início de 1942, no ponto de bonde em frente à casa de Augusta, sua patroa, Carminha conheceu João, motorneiro da linha Tijuca, morador da favela Barreira do Vasco e futuro pai de Bituca. Francisca, irmã de Carminha, relatou a resistência de João ao casamento.
"Aquela paixão repentina, a gravidez num momento conturbado, parece ter abalado a harmonia entre Carminha e a dona da pensão. Depois de um suposto desentendimento, ela saiu do emprego para morar com a família de João na Barreira do Vasco, na Baixada de São Cristóvão, carregando o filho pequeno", narra Vilma.
Com saudades do garoto, Augusta visitava Milton na favela. São lembranças de Ercília. "Ela chegou, olhou o ambiente, olhou pro Bituca, viu ele maltratadinho. Tambe?m na?o gostou de ver a ma?e bem magrinha e disse pra minha irma?: ?Maria do Carmo, vamos embora?. Mas ela na?o quis ir. Enta?o, Dona Augusta falou: ?Se voce? quer ficar aqui, voce? fica, mas o Bituca na?o vai ficar na?o, o menino nasceu na minha casa e vai com a gente, vou botar no carro e levar agora! Voce? concorda, Maria do Carmo? Em voce? na?o posso mandar, mas a porta esta? aberta pra você tambe?m?".
Outra vez na Tijuca, estático na porta de casa, Bituca esperava o bonde do pai. Ao vê-lo, acenava.
Aos 25 anos, Carminha contraiu tuberculose. Depois de uma viagem com os patrões a Juiz de Fora, sua doença se agravou.
O terror do contágio fez com que ela voltasse a morar com a mãe, em Minas. O pequeno Bituca ficou na pensão. "Desta vez veio sem o Bituca e chegou doente de cama, ficou na casa da avo?, no bairro de Sa?o Mateus. Fui visita?-la, estava deitada, me olhou e baixou a cabec?a", lembrou Ione, prima de Vilma e Milton.
Segundo "De Onde Vem Essa Força", "Carminha ficou magra, pele e osso, gritava e tinha viso?es".
A essa altura, Li?lia, de 22 anos, estudante de piano, estava fascinada por Bituca e disposta a adotá-lo. João achou que o filho estava "em boas mãos" e nunca mais o procurou. Sumiu. Antes de crescer com a nova mãe em Três Pontas, em Minas Gerais, o garoto ficou por um tempo com a avó Maria, no centro de Juiz de Fora. Não se adaptou. Glorinha, outra tia de Milton, lembrou de uma triste tarde de fome ao lado do sobrinho e mais três crianças vizinhas.
"A gente na?o tinha o que fazer pra comer e pegamos folhas, botamos no foga?o de lenha e cozinhamos. Eu me lembro como se fosse hoje, o Bituca estava com aquela chupeta vermelha que na?o tirava da boca e um paleto? de flanela com um desenho vermelho dos dois lados. No?s todos passamos mal, porque o que eu cozinhei era folha de inhame brabo. Ficamos de piriri e fomos socorridos por vizinhos, que sabiam que esta?vamos so?s", disse Glorinha para o livro.
A origem do apelido ganha uma explicação diferente daquela conhecida até aqui. Ercília afirma que Augusta se inspirou em Pinduca, um personagem de gibi. "Ai? apareceu pra trabalhar na pensa?o uma nortista, a Elza, que tambe?m tinha um filho nene?m. E Dona Augusta apelidou o Milton de Bituca e o filho da Elza de Bororo?, porque ele parecia um i?ndio", ela contou. Segundo o cantor, o apelido veio de Lília, sua mãe adotiva, ao observar seu bico nas horas de zanga.
"A gente na?o tinha o que fazer pra comer e pegamos folhas, botamos no foga?o de lenha e cozinhamos. Eu me lembro como se fosse hoje, o Bituca estava com aquela chupeta vermelha que na?o tirava da boca e um paleto? de flanela com um desenho vermelho dos dois lados. No?s todos passamos mal, porque o que eu cozinhei era folha de inhame brabo. Ficamos de piriri e fomos socorridos por vizinhos, que sabiam que esta?vamos so?s", disse Glorinha para o livro.
A origem do apelido ganha uma explicação diferente daquela conhecida até aqui. Ercília afirma que Augusta se inspirou em Pinduca, um personagem de gibi. "Ai? apareceu pra trabalhar na pensa?o uma nortista, a Elza, que tambe?m tinha um filho nene?m. E Dona Augusta apelidou o Milton de Bituca e o filho da Elza de Bororo?, porque ele parecia um i?ndio", ela contou. Segundo o cantor, o apelido veio de Lília, sua mãe adotiva, ao observar seu bico nas horas de zanga.
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